O Estado de S. Paulo
Além de ignorar os contornos da crise, ele tem um nível de imprevisibilidade muito perigoso nessas situações
Bolsonaro ficou conhecido por criar crises.
Na sua única viagem internacional de importância, ele escolheu a crise. Não foi
criada por ele, possivelmente não se interessa por suas coordenadas, mas, ainda
assim, viaja para Moscou para encontrar Putin. É uma viagem para discutir
comércio. Eu vendo carne, você vende fertilizante, o que mais podemos fazer?
O problema é que tropas russas estão
estacionadas na fronteira com a Ucrânia. É um tema prioritário nos Estados
Unidos e na Europa. Um clima de tensão: invadem ou não invadem?
Putin sabe o que quer e, sobretudo, sabe quando pressionar para manter a Ucrânia sob sua influência. A Europa depende do gás russo, e nada mais valioso do que um bom aquecimento no inverno.
Por sua vez, Biden enfrenta um segundo
grande desafio. O da retirada das tropas do Afeganistão foi desgastante. Evitar
uma invasão da Ucrânia não é fácil. Mesmo porque os mecanismos de sanções
econômicas nem sempre são eficazes contra um país resiliente como a Rússia.
Bolsonaro leva talvez um pouco mais do que
a carne em sua agenda. Claro que ela é importante, porque trata do interesse de
seu grupo de apoio no agronegócio. Mas os russos buscam gás na Amazônia e
querem fabricar seus helicópteros militares em Belo Horizonte.
Desde 2002, quando se formou uma parceria
estratégica entre Brasil e Rússia, ao menos sete áreas de cooperação
tecnológica se abriram. Mas, ainda assim, como explicar uma viagem dessas
agora? Por mais carnívora que seja a agenda, Bolsonaro é presidente de um país
e será chamado a declarar algo sobre um tema que mobiliza o mundo.
Quando a Rússia anexou a península da
Crimeia, o Brasil, na época sob o governo Dilma, expressou uma posição
prudente, sem se comprometer muito com nenhum dos lados. Talvez seja esse o
caminho de Bolsonaro. A diferença é que agora Bolsonaro estará no cenário da
crise, sob os olhos do mundo. Uma saída realmente prudente seria adiar a viagem
para tempos mais calmos. Naturalmente, estará cercado de experientes diplomatas
que devem orientar seus passos. Mas, além de ignorar os contornos da crise,
Bolsonaro tem um nível de imprevisibilidade muito perigoso nessas situações. É
irônico que a política internacional do governo em fim de mandato obrigue
Bolsonaro a pisar em ovos. Até aqui ele fez inúmeras bobagens. Rompeu a
cooperação com a Alemanha e a Noruega na Amazônia, jogando dinheiro e reputação
no lixo. Investiu contra Macron, fez piadas machistas sobre a primeira-dama
francesa. Na América do Sul, fez comentários inadequados sobre a Argentina e
viu aos poucos se formar um verdadeiro cinturão de esquerda em torno dele –
Bolívia, Chile e Peru.
O único ponto do mundo pelo qual se
interessava abertamente, os Estados Unidos, acabou precipitando seu isolamento.
Apostou em Trump, perdeu. Como se não bastasse a imprudência, seguiu duvidando
da legítima eleição de Biden.
Do ponto de vista internacional, Bolsonaro
está isolado. E quem está só, abraçado a Putin, deve viver uma solidão bem mais
gélida. Isso parece ter sido também uma herança de Trump no universo mental
bolsonarista. Os setores tradicionais da extrema direita acham que na Rússia
também existem fontes de tradição que contestam a modernidade.
Steve Bannon mantinha uma relação com um
tradicionalista russo, Aleksandr Dugin. Este via como necessária a recuperação
da importância da Rússia no mundo e achava os chamados isolacionistas nos
Estados Unidos potenciais aliados. Na eleição de 2016, a proposta de Dugin era
a de encorajar a Rússia a introduzir “a desordem geopolítica na atividade
interna dos Estados Unidos”. A verdade é que a participação da Rússia na
eleição de 2016 nos Estados Unidos foi um grande tema de investigação. As
relações entre o tradicionalismo russo e a extrema direita levaram também a um
longo debate entre Dogin e Olavo de Carvalho.
Não se pode precisar até que ponto a
Rússia, como a Hungria, pode ser vista como uma aliada em bandeiras
tradicionais pelo bolsonarismo. Certamente, alguns temas de direitos humanos
podem unir Bolsonaro e Putin para além da carne e dos fertilizantes. O Brasil
tem apoiado propostas russas contrárias à expansão dos direitos das mulheres.
Paradoxalmente, a agenda conservadora que
Bolsonaro não conseguiu avançar no Congresso brasileiro pode se tornar um tema
de conversa na Rússia. E isto 105 anos depois da revolução bolchevique. Não
deixa de ser um reencontro. Em 1917, o Brasil rompeu relações com a Rússia
precisamente por causa da revolução. Em 1947, rompeu de novo por causa da
ascensão do Partido Comunista. São voltas que a história dá.
A Rússia tornou-se atraente para a extrema
direita, exatamente por alguns dos fatores que pareciam ser atropelados pelos
revolucionários. E o Brasil se torna mais atraente para a Rússia, na medida em
que se afasta, pelo menos teoricamente, da globalização que considera uma
vitória do marxismo cultural.
O mais possível é que intensifiquem a troca
de carne e fertilizantes. A de ideias não parece promissora.
Os dois são reacionários e autoritários.
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