O Globo
Um rapaz de apenas 24 anos trabalhou num
local por algum tempo. Como era de esperar, desejava receber pelos seus
serviços. O valor? R$ 200. Não recebeu e resolveu pedir o que era de direito,
no dia 24 de janeiro. Entretanto foi recebido com violência, derrubado por
vários homens, virou alvo de socos, pontapés e pauladas até não resistir e
morrer.
O jovem era congolês e tinha nome Moïse
Mugenyi Kabagambe.
Na semana seguinte, no dia 2 de fevereiro,
um homem voltava do trabalho para casa, quando, ao tentar abrir o portão de sua
garagem manualmente —o que poderia acontecer com qualquer um —, foi vítima de
três disparos feitos pelo vizinho, que alegou tê-lo confundido com um ladrão.
Era brasileiro e também tinha nome —Durval Teófilo Filho.
Esses dois fatos extremamente lamentáveis, que devem ser considerados crimes bárbaros, guardam uma característica em comum: a cor da pele das vítimas.
Quando o país ainda estava chocado com
tanta crueldade em relação a Moïse, mais uma tragédia ocorreu, dessa vez com
Durval.
A desvalorização da vida da pessoa negra
faz com que seja “comum” qualquer indivíduo se sentir à vontade para agredi-la
fisicamente.
A desumanização da época da escravidão
transformou-se no não reconhecimento da aplicação dos direitos fundamentais
para a população negra nos dias de hoje. Os episódios relatados demonstram que
nossa vida vale menos que R$ 200 e que nem sequer temos o direito de ir e vir
em nossa sociedade, tornando uma ação de sair para trabalhar uma atividade que
põe em risco nossas vidas.
Para quem não acredita na incidência do
racismo nos dois casos, convido a responder se é comum ter notícias de que
pessoas brancas são linchadas ou confundidas com bandidos.
Precisamos enxergar ainda a grande
probabilidade de as mortes não gerarem nenhuma consequência negativa para os
executores, diante da histórica ausência de resposta efetiva de nossas
autoridades competentes.
E por que é comum que esses fatores
influenciem e convirjam para a população negra brasileira?
Foram quase 350 anos de um regime de opressão
e da negação do reconhecimento de caráter humano. É só lembrarmos da figura do
pelourinho, conhecido como a coluna de pedra ou de madeira, colocada em lugar
central e público, onde eram exibidos e castigados os negros. A História do
Brasil foi construída sob essas condições.
Por isso, entendo que é mais adequado
adotar a ideia da existência de um “racismo naturalizado”, porque explica
melhor o tipo de comportamento repetido por pessoas de todas as etnias, tendo
em vista que há quem defenda a inexistência de racismo quando negros estão
envolvidos no evento, como se deu no assassinato do Moïse.
Para ilustrar a proposta aqui exposta, cito
Preto Zezé, um grande líder antirracista, quando explica: “É a eficiência do
racismo produzindo um auto-ódio que nos mata. O fato de um PM preto ser
violento ou de um preto chamar o outro de macaco não muda em nada, apenas
revela o pior do racismo: fazer-nos ter ódio de nós mesmos”.
Apesar da morte do Moise ser mais violenta,a do Durval expressa melhor ainda o racismo naturalizado em nossa sociedade.
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