terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

É preciso encorajar esforço diplomático para evitar guerra

O Globo

A visita de Jair Bolsonaro à Rússia será precedida por outra bem mais importante para Vladimir Putin e para o mundo. Putin recebe hoje em Moscou o chanceler alemão, Olaf Scholz, cujo objetivo é desarmar a ameaça de invasão da Ucrânia, desencadeada pela mobilização de quase 130 mil soldados russos, a maior na Europa desde a Segunda Guerra. Scholz e o francês Emmanuel Macron têm conduzido o esforço mais promissor para evitar um novo conflito em solo europeu. É preciso encorajar essa iniciativa, promovida pelos dois países que costuraram o cessar-fogo em vigor desde a invasão russa de 2014, no grupo batizado de Formato Normandia (França, Alemanha, Rússia e Ucrânia).

É difícil decifrar os objetivos reais de Putin com sua nova aventura militar. Da última vez, ele fez um ataque de surpresa, com tropas disfarçadas, para ocupar regiões ucranianas de maioria russa. Desta vez, seus movimentos são acompanhados em tempo real em imagens de satélite, enquanto os Estados Unidos têm soado sucessivos alarmes para o risco, desmentidos também em tempo real pelo governo russo.

Diante do fracasso das conversas com Estados Unidos e Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o movimento dos europeus, mesmo coordenado com os aliados, procura manter distância profilática das nêmesis de Putin. Nada garante que dê certo, mas traz uma esperança de saída negociada, desfecho mais desejável que a guerra. Está lastreado na percepção de que o conflito não interessa nem a Putin. Observadores do Kremlin entendem que tudo pode ser apenas um teatro que dê aos americanos a medida de até onde ele está disposto a ir para evitar a expansão da Otan aos países que quer manter em sua esfera de influência (Ucrânia, Bielorrússia e Geórgia).

Em que pesem as barbaridades de Putin, é compreensível que os russos não queiram deixar que mísseis ou tropas da Otan sejam deslocados para seu quintal. Não é preciso acreditar nas fantasias dele sobre a história ucraniana nem endossar seus pendores tirânicos para entender a necessidade de um novo equilíbrio na região. A expansão da Otan para o Leste desde o fim da Guerra Fria se deu à revelia da Rússia, acreditando na acomodação futura. Prova de que foi uma aposta errada são as sucessivas incursões russas. É hoje inverossímil que a Ucrânia entre na Otan. Ou que a Rússia se afunde numa longa guerra para anexar o país. Eis o ponto de partida para as negociações.

A Europa depende da Rússia para suprir 40% de seu gás e 25% de seu petróleo. Não aceitará sanções que alijem o país do sistema global de pagamentos. Desde 2015, as reservas internacionais russas cresceram 70%, para mais de US$ 620 bilhões. A Rússia ainda dispõe de um fundo soberano inflado a US$ 190 bilhões pela alta do petróleo. A gestão fiscalmente conservadora de Putin — que prejudicou o crescimento e o combate à pandemia — derrubou a dívida pública a 20% do PIB. Tudo isso traz fôlego para resistir às sanções.

Pelos termos em discussão, a Ucrânia teria de aceitar maior autonomia das regiões de maioria russa e desistir da pretensão à Otan, adotando neutralidade similar à da Finlândia na Guerra Fria. Putin teria de tirar suas tropas de lá e aceitar uma democracia na vizinhança, mais próxima do Ocidente do que ele gostaria. Não se sabe se topará, mas, se os europeus convencerem ambos os lados a ceder, o pior cenário será afastado. Ao menos por enquanto.

Plataformas devem cumprir promessa de coibir desinformação nas redes

O Globo

Representantes de redes sociais e aplicativos de mensagens assinarão hoje no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um memorando de entendimento com uma lista de ações para combater a desinformação nas eleições deste ano. É esperada a presença de executivos de empresas como Google, Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e Twitter. A grande ausência continua sendo o Telegram, que tem mais de 50 milhões de usuários no Brasil, mas continua se recusando a se submeter às leis brasileiras.

A cooperação é de extrema importância. O Brasil espera que as gigantes digitais tenham com a eleição brasileira no mínimo o mesmo cuidado que tiveram com a americana em 2020, quando adotaram regras mais duras para a circulação de mensagens políticas e proibiram anúncios por prazos mais longos antes do pleito. Tudo isso é imprescindível. O passo seguinte é garantir que as regras sejam cumpridas. O histórico recente é preocupante.

Como revelado por reportagem do GLOBO, existe um hiato entre as promessas e a execução. Os repórteres testaram os mecanismos criados por Facebook, Instagram e Twitter para a denúncia de desinformação. Foram indicadas 20 postagens sobre saúde e política. Depois de mais de uma semana, apenas quatro tinham recebido o rótulo de enganosa ou tinham sido removidas. As demais seguiam no ar, entre elas um post em que a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) usou um site americano para divulgar dados fraudulentos sobre “doenças graves” decorrentes da vacina contra a Covid-19. Outra postagem mentirosa que continuava na rede era do deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) atacando a lisura das urnas eletrônicas.

A Meta afirma que não envia conteúdo de políticos eleitos para verificação de fatos. A justificativa é que não deve “arbitrar debates políticos e impedir que o discurso de um representante eleito chegue ao seu público e seja alvo de amplo debate e escrutínio”. Os posts de Bia Kicis e de Filipe Barros são desinformação óbvia. Um rótulo de “enganoso” não seria censura, muito menos interferência indevida no debate. Políticos, como todo cidadão, têm direito a se expressar livremente. Isso não os exime de ser corrigidos quando erram ou mentem.

Um estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP-FGV) mostra que figuras públicas continuam a lançar palavras de ordem para mobilizar seus grupos de apoio na disseminação de desinformação sobre o processo eleitoral. Somente no Facebook houve quase 400 mil postagens em 15 meses. A ação rápida das plataformas para avaliar tais mensagens é chave para controlar essas campanhas. As empresas digitais não serão julgadas pelo número de memorandos de entendimento que assinarem. Para que as eleições deste ano ocorram dentro da normalidade, o discurso delas precisa estar próximo da prática.

De volta à farsa

Folha de S. Paulo

Novo ataque às urnas mostra que Bolsonaro não desistiu de tumultuar a eleição

Jair Bolsonaro mostrou que continua disposto a investir no descrédito do sistema eleitoral brasileiro para criar tumulto em caso de derrota no pleito de outubro.

Numa transmissão ao vivo na internet, o presidente disse que militares detectaram vulnerabilidades nas urnas eletrônicas no fim do ano passado e apresentaram questionamentos ao Tribunal Superior Eleitoral, ainda sem resposta.

Bolsonaro acrescentou que a elevada audiência alcançada por suas aparições nas redes sociais mostra que estão erradas as pesquisas que lhe atribuem baixos índices de popularidade —e disse esperar que suas desconfianças sejam sanadas até o dia da votação.

Embora o tom tenha sido mais ameno que o adotado em manifestações similares no passado, quando ele atacou ministros do Tribunal Superior Eleitoral, defendeu teses conspiratórias e propagou mentiras sobre as urnas, as más intenções continuam indisfarçáveis.

Durante o falatório, o mandatário fez mais uma vez menção à fantasia de que as eleições de 2018 foram fraudadas por pessoas interessadas em lhe roubar a vitória no primeiro turno, o que obviamente jamais se comprovou.

Bolsonaro lembrou que é o comandante em chefe das Forças Armadas, insinuou que a Justiça não deu a devida atenção aos questionamentos e disse que mandou o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, cobrar explicações.

O TSE relatou ter recebido um pedido de informações do general Heber Garcia Portella, responsável pela área de defesa cibernética do Exército, e esclareceu que só não elaborou a resposta ainda por causa do recesso do fim de ano e da complexidade das questões.

O militar faz parte de uma comissão de especialistas formada pelo próprio TSE no ano passado para reforçar a fiscalização do processo eleitoral. Segundo o tribunal, ele não apontou nenhuma falha e se limitou a pedir dados técnicos para entender melhor o sistema.

Todos os ataques de Bolsonaro às urnas foram refutados com clareza pela Justiça, com evidências que o desmentem. Não há razão para imaginar que as questões do general Portella não serão esclarecidas com a devida presteza.

O presidente jamais apresentou qualquer coisa que sustentasse suas patranhas, mas aposta na balbúrdia para manter seguidores mais radicais mobilizados e minar a confiança depositada pela maioria na lisura do processo eleitoral.

Alvo de seis inquéritos conduzidos pelo Supremo Tribunal Federal, incluindo um por ter espalhado informações falsas sobre as urnas e outro por ter divulgado dados sobre um ataque cibernético sofrido pela Justiça Eleitoral, Bolsonaro sabe dos riscos que corre.

Vacinar as crianças

Folha de S. Paulo

Urge identificar causas de atraso aparente nos dados da imunização infantil

Causam preocupação os sinais de atraso da vacinação contra a Covid-19 entre as crianças brasileiras, ainda que os dados possam estar prejudicados por subnotificação.

A marca de 15% de imunizados na faixa de 5 a 11 anos, verificada na semana passada, nem de longe pode ser considerada um sucesso.

Conforme reportagem publicada pela Folha, os 23 dias necessários para chegar a esse percentual colocam o Brasil, proporcionalmente, em nono lugar num ranking de dez países que disponibilizam o detalhamento por data e idade.

Demoramos, segundo números oficiais, quase o triplo do tempo gasto por Canadá, Austrália, Argentina e Uruguai. Ficamos ainda atrás de Alemanha, Estados Unidos, França, Chile e Itália. Apenas nos saímos melhor que a França, um dos principais polos de resistência às vacinas na Europa.

Em que pesem falhas na coleta de dados em boa parte dos municípios, que podem afetar as estatísticas, é fato que o país começou a vacinar tarde. Enquanto vizinhos como Argentina e Uruguai autorizaram o uso do imunizante em setembro e outubro de 2021, por aqui só o fizemos em 16 de dezembro.

Levou ainda cerca de um mês para que chegasse a primeira remessa, de 1,2 milhão de doses, da vacina pediátrica da Pfizer. Porém a quantidade, ínfima para um universo de 20,5 milhões de crianças, e os problemas na distribuição resultaram em um início claudicante da campanha —que chegou a ser paralisada momentaneamente em algumas cidades.

A inépcia somou-se à perversa cruzada de desinformação encampada por algumas autoridades, a começar pelo presidente. Jair Bolsonaro agiu como pôde para conturbar a vacinação infantil, ao arrepio da ciência e de suas responsabilidades como chefe de Estado.

Secundado por sequazes como os ministros Marcelo Queiroga e Damares Alves, difundiu um temor infundado em pais, exagerando o risco de efeitos adversos na realidade raríssimos; promoveu ataques aos técnicos da Anvisa responsáveis pela aprovação do imunizante; empenhou-se em criar empecilhos burocráticos de toda a sorte.

A infame cruzada pode contribuir para que as crianças se tornem os principais agentes de disseminação do coronavírus justamente no momento em que as aulas presenciais enfim retornam no país, prejudicando, também, um movimento que o governo em nenhum momento se esforçou para viabilizar.

‘Janela partidária’ deturpa a política

O Estado de S. Paulo

Muitos enxergam na maioria dos partidos políticos meras estruturas administrativo-financeiras para viabilizar a eleição de pessoas

Muitos enxergam na maioria dos partidos meras estruturas para eleger pessoas.

Fortalecidos pela fraqueza de um presidente da República que tem aversão ao trabalho, não sabe o que é governar e jamais deu sinais de que gostaria de aprender, os partidos políticos que compõem o Centrão, sobretudo PL, Progressistas e Republicanos, aumentaram muito seu poder de barganha para atrair parlamentares durante a chamada janela partidária, período em que deputados podem trocar de partido sem perder o mandato.

O PL, ao qual Jair Bolsonaro se filiou recentemente, deve ser o partido com a maior bancada na Câmara ao final da janela partidária, que vai de 3 de março a 1.º de abril. Estima-se que a legenda, um protetorado do notório Valdemar Costa Neto, deverá saltar de uma bancada de 43 para 65 deputados federais, enquanto o recém-criado União Brasil, quando as negociações terminarem, poderá ter uma bancada de até 61 deputados. O Progressistas, partido do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, e do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, deverá ter uma bancada de 52 deputados, 10 a mais do que tem hoje. Já a bancada do Republicanos deverá crescer de 31 para 34 deputados.

Partidos outrora mais consistentes, como MDB e PSDB, deverão perder deputados. O caso do PSDB é paradigmático. A despeito de ter realizado prévias e ter um pré-candidato à Presidência da República, próceres tucanos cogitam a céu aberto renunciar à candidatura presidencial para privilegiar a formação de bancadas no Congresso, sobretudo na Câmara.

Há razão para isso, nada nobre, mas há. Como fio condutor de todas as negociações para o troca-troca de partidos durante a janela de março está o dinheiro dos fundos públicos que irrigam as contas das legendas – o Fundo Partidário e o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o chamado fundo eleitoral –, além dos recursos bilionários do “orçamento secreto”, mecanismo que forjou a compra de uma tênue base de apoio ao presidente Jair Bolsonaro no Congresso. Tudo mais é periférico nas conversas.

Para os caciques partidários, o que está em jogo é a formação de bancadas na Câmara, pois, quanto maior a bancada, maior o quinhão que a legenda recebe dos fundos públicos e, não menos importante, maior é seu poder sobre o próximo presidente da República, seja quem for. Os deputados que tentarão a reeleição neste ano, por sua vez, não são movidos por sentimentos mais altaneiros: estão atrás de recursos que viabilizem as suas campanhas. E nesse jogo de interesses a orientação ideológica ou a consistência programática dos partidos são as menores preocupações dos candidatos.

A descaracterização da política partidária não é um fenômeno recente no Brasil, mas chegou ao paroxismo nos últimos anos, à vista de todos. Hoje, em prejuízo da democracia representativa no País, não são poucos os partidos políticos que se converteram, na prática, em “empresas” cujo principal objetivo é assegurar os interesses de seus donos, servindo apenas como meras estruturas administrativo-financeiras para viabilizar eleições de pessoas.

Não é ruim, nem sequer errado, enxergar os partidos políticos como meios de obtenção de poder político. Seria até uma incongruência, haja vista que a filiação partidária é uma das condições de elegibilidade determinadas pela Constituição. O problema reside na má concepção do papel dos partidos políticos – que vai muito além do caráter instrumental da obtenção de mandatos eletivos – e no animus que permeia o processo de filiação partidária.

É triste, mas é a realidade tal como está posta. A democracia no Brasil será tanto mais vigorosa quanto mais fortes se tornarem os partidos políticos em termos de orientação ideológica e consistência programática, além, evidentemente, de propiciarem maior coesão entre seus filiados. Contudo, nada indica que, às vésperas da abertura da janela partidária e em meio às negociações para formação das federações, o País esteja caminhando nessa direção.

O quadro só será revertido com a aprovação de uma reforma política que melhore as condições de representação e dê fim à excrescência do financiamento público dos partidos, aproximando-os, afinal, de seus eleitores.

Apagão dos planos no setor elétrico

O Estado de S. Paulo

A produção de energia sem linhas de transmissão mostra a ausência de planejamento, particularmente acentuada no atual governo

O sol deve ser a principal fonte de energia na expansão do sistema elétrico, segundo indicam os projetos cadastrados para o leilão do setor, marcado para maio. Nesse leilão o governo deverá selecionar os empreendimentos fornecedores de eletricidade para todas as distribuidoras. Geração fotovoltaica aparece em cerca de dois terços – 67% – dos 1.894 projetos catalogados na Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Essa fonte deverá garantir 70% dos 72.250 mil megawatts (MW) adicionais estimados para o programa. Falta saber como essa eletricidade chegará aos consumidores, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Há um descompasso entre projetos de geração e projetos de transmissão, um detalhe comprometedor para todo o programa setorial.

Planejamento vem perdendo espaço em Brasília, há vários anos, e praticamente sumiu da agenda federal em 2019, quando se instalou a atual administração. O descompasso entre geração e transmissão tem sido observado há alguns anos. Foi evidenciado, por exemplo, depois de investimentos importantes em produção de energia eólica no Nordeste.

Em 2016 a eletricidade produzida com a força do vento correspondia a cerca de 4% do consumo nacional e a 25%, aproximadamente, do nordestino, segundo cálculo do Operador Nacional do Sistema Elétrico. Mas a capacidade produtiva era subutilizada. No começo daquele ano, 13 usinas estavam paradas por falta de linhas de transmissão.

Três anos antes, 26 empreendimentos estavam prontos para produzir energia de fonte eólica, na Bahia, no Ceará e no Rio Grande do Norte, mas os projetos de linhas de transmissão estavam atrasados. A produção daquele conjunto de usinas seria suficiente para abastecer 3,3 milhões de pessoas.

Curiosamente, a parte mais complexa do trabalho havia sido realizada. Enormes equipamentos para converter vento em eletricidade haviam sido fabricados, transportados por milhares de quilômetros e instalados com sucesso. Mas faltou um componente essencial do sistema: torres e linhas para levar a energia aos consumidores.

Os brasileiros convivem há muito tempo com esse arremedo de planejamento, sempre com falta de um detalhe essencial. É parte do dia a dia. Completado o serviço de pavimentação, a companhia de gás ou de água arrebenta o asfalto, no dia seguinte, para instalar ou arrumar seu encanamento.

Planejamento ruim, tanto quanto falta de planejamento, pode causar incômodos injustificáveis, paralisação de atividades, prejuízos enormes e até perda de vidas. No caso da energia, os danos são evidentes. Números da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), reproduzidos pelo Estadão, mostram um desarranjo desastroso. Por falta de linhas de transmissão, geradoras deixaram de lançar no sistema 33 mil megawatts/hora (MWH).

Essa perda chegou a 70,8 mil MWH em 2020 e a 105 mil no período de janeiro a agosto de 2021.

Planejamento, no entanto, foi por muito tempo atividade essencial na administração pública brasileira. A construção do conjunto Urubupungá-ilha Solteira, por exemplo, concretizou ideias esboçadas no governo paulista na segunda metade dos anos 1940.

As obras da usina de Itaipu materializaram ideias exploradas muitos anos antes pela Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai e encampadas pelo governo militar. Houve mudanças importantes entre a concepção original e a execução final desses projetos, mas em todos os casos predominaram noções de estratégia e de longo prazo, com preocupações inclusive diplomáticas, quando os planos envolviam, como no caso do Rio Paraná, recursos partilhados internacionalmente.

Energia foi sempre um item central de planos de industrialização e de modernização do País. A desindustrialização, assim como o descompasso entre os programas do setor elétrico, mostra o empobrecimento da noção de governo e o desgaste, acelerado nos últimos três anos, das funções administrativas. Não basta falar em “mais Brasil e menos Brasília”. Esse pode ser um belo objetivo, mas para alcançá-lo o País depende de uma Brasília mais produtiva e mais competente.

“PL do veneno” ameaça liberar uso de agrotóxico

Valor Econômico

Flexibilização do registro abre espaço para substâncias que causam câncer, mutação genética e má formação fetal

Em mais um movimento do governo de Jair Bolsonaro para desmontar as regras vigentes, com apoio de parcela expressiva do Legislativo, a Câmara dos Deputados aprovou na semana passada o projeto de lei que flexibiliza o controle e a aprovação de agrotóxicos no país. O projeto atribui ao Ministério da Agricultura a responsabilidade pelo registro de novos agrotóxicos e esvazia o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), acabando com o modelo tripartite em vigor, apesar das implicações diretas desses produtos na saúde da população e no ambiente.

Pouco depois de o governo ter incluído a proposta na lista de prioridades da agenda legislativa deste ano, publicada pelo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, surpreendeu, levando o tema rapidamente a votação, com apoio da bancada ruralista. Na análise do texto-base, 301 deputados votaram a favor, enquanto 150 foram contrários e dois se abstiveram. O projeto volta agora à apreciação do Senado, onde já havia passado em 2016.

Além de concentrar o registro de novos agrotóxicos no Ministério da Agricultura, o projeto de lei 6.299/2002, chamado de “PL do veneno” pela oposição, incumbe a União de criar normas e leis sobre as atividades relacionadas aos defensivos, e controlar e fiscalizar o setor, tirando de Estados e municípios a atuação na área. O monitoramento de resíduos em alimentos será feito em conjunto com o Ministério da Saúde, mas a divulgação dos resultados ficará a cargo do Ministério da Agricultura. Atualmente, a Anvisa realiza avaliação periódica de níveis de agrotóxicos em alimentos.

Um dos pontos mais intrigantes do projeto proíbe agrotóxicos que “apresentem risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente", que é definido como “risco considerado insatisfatório por permanecer inseguro ao ser humano ou ao meio ambiente, mesmo com a implementação das medidas de gerenciamento dos riscos", sem detalhes científicos como especifica a legislação atual. Não por coincidência o PL nomeia os produtos como "pesticidas" uma vez que, segundo o relator, o deputado Luiz Nishimori (PL-PR), o termo agrotóxico seria "depreciativo".

O projeto altera a lei 7.802, de 11 de julho de 1989, que trata desde a pesquisa até a comercialização, os registros e a fiscalização de agrotóxicos. Ele surgiu em 2002, como proposta do ex-senador Blairo Maggi. Alguns argumentos equivocados foram usados para defender o projeto. Um deles é colocar o Brasil em igualdade com as potências agrícolas. A legislação atual, no entanto, não impediu que o país se tornasse uma dessas potências, com produtividade crescente, desde os tempos de Blairo Maggi, que já foi chamado de rei da soja.

Outro argumento falso é que a nova legislação vai baratear o custo dos defensivos agrícolas, reduzindo a inflação. No entanto, foi a escalada do câmbio e as dificuldades do comércio internacional causadas pela pandemia que encareceram os agrotóxicos no ano passado. Uma nova legislação não resolve essas questões de cunho macroeconômico. O relator Nishimori ainda se queixa da burocracia, que alonga o prazo de aprovação dos produtos. Mas isso não precisava de uma nova lei para ser resolvido. O projeto prevê um registro temporário para novos produtos destinados a pesquisas e experimentações, que deverão ter análise concluída em até 30 dias.

A realidade é que, neste século, foram aprovados 4.551 agrotóxicos, um terço dos quais neste governo, desde 2019. No ano passado, 550 produtos obtiveram registro, mais do que os 493 do ano anterior.

A expectativa agora é que o Senado corrija as aberrações do projeto, que tem características anacrônicas em um momento em que o respeito ao meio ambiente sobressai nas demandas da sociedade e nas relações comerciais. Deixar um tema tão sério apenas nas mãos do Ministério da Agricultura não só abre espaço para conflitos de interesse como vai na contramão das práticas do resto do mundo. Análise do projeto feita em 2018 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) critica o desmonte da regulação tríplice, que minimiza a possibilidade de as agências "agirem para atender exclusivamente" aos interesses econômicos do setor regulado”. Os pesquisadores da fundação também se preocupam que a flexibilização do registro abra espaço para substâncias nocivas que causam câncer, mutação genética e má formação fetal.

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