quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Facilitar o acesso às armas é dar munição ao crime organizado

O Globo

Uma pesquisa do Instituto Sou da Paz mostra a ligação estreita entre a compra legal de armas e o arsenal apreendido em poder de criminosos. O estudo “Desvio fatal: vazamento de armas do mercado legal para o ilegal no estado de São Paulo”, antecipado no domingo pelo Fantástico, analisou quase 24 mil ocorrências em São Paulo entre 2011 e 2020. Constatou uma coincidência inequívoca entre os modelos furtados, roubados ou extraviados e os que estavam nas mãos dos bandidos. A maior parte do armamento recuperado (53%) estava com a numeração raspada, impossibilitando o rastreamento.

De acordo com o levantamento, a cada dia nove armas legais são desviadas no estado de São Paulo. O furto é a ocorrência mais comum (60%), seguida de roubo (38%) e perda ou extravio (apenas 2%). Detalhe relevante: quase metade dos casos (46%) aconteceu em residências. Isso desmente a ideia de que as armas podem servir para proteger os cidadãos. Não só não protegem, como passam às mãos dos criminosos, alimentando o ciclo da violência. Embora os casos em residências sejam mais frequentes, repartições públicas (como fóruns e delegacias), bancos e empresas de segurança costumam registrar maior quantidade de armas desviadas.

Janeiro e dezembro são os meses que concentram o maior número de ocorrências. De acordo com os pesquisadores, isso pode estar ligado ao período de férias e festas de fim de ano, quando muitos imóveis ficam vazios e mais vulneráveis. O perfil das vítimas mostra que quase metade (46%) tem entre 30 e 49 anos. Quando se analisam as categorias, vigilantes ou seguranças (14,4%) e policiais (10,6%) são os mais visados. Nem profissionais experientes, que recebem treinamento, conseguem impedir furtos e roubos de suas armas. Que dizer do cidadão comum?

O estudo mostra ainda que as armas mais apreendidas pela polícia paulista no período analisado foram o revólver calibre 38 (43% do total), a pistola calibre 40 (21%), o revólver calibre 32 (18%) e a pistola 380 (12%), modelos que coincidem com as mais furtadas, roubadas ou extraviadas. Segundo os pesquisadores, algumas armas compradas legalmente levam menos de 24 horas para ser usadas em crimes.

A pesquisa do Sou da Paz é mais uma a corroborar o absurdo da facilitação do acesso a armas e munições promovida pelo presidente Jair Bolsonaro. Desde que assumiu, ele já editou mais de 30 atos normativos facilitando a compra, o porte de armas e dificultando o rastreamento. Sempre sob o pretexto de que o cidadão tem o direito de se proteger. Como era esperado, o número de registros de armas no país disparou.

A fronteira entre armas legais e ilegais é cada vez mais tênue, como mostra o Instituto Sou da Paz. O cidadão comum, com a intenção de se proteger num país que não lhe dá segurança, acaba fornecendo munição aos bandidos, agravando o problema da violência. Segurança pública é dever do Estado. Terceirizá-la, transferindo ao cidadão tarefa que não é dele, é um crime.

Governos estaduais têm de conter gasto com funcionalismo

O Globo

Na área da gestão pública, era de esperar que a pandemia tivesse trazido lições de austeridade aos governadores. Desgraçadamente, isso não está acontecendo. A poucos meses das eleições, vários têm distribuído aumentos salariais ao funcionalismo público sem nenhum critério além do interesse eleitoral — um erro imperdoável.

Os casos mais críticos são conhecidos: Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul têm graves problemas de endividamento. Para colocar a dívida em trajetória sustentável, é imprescindível manter as contas no azul. Sem controlar os gastos com pessoal, item de maior peso no Orçamento, não há saída viável. Qualquer argumento que tente fugir disso não passa de conversa fiada.

Ao que parece, os resultados fiscais positivos registrados em 2021 trouxeram uma falsa impressão de bonança e têm servido de pretexto para a prodigalidade. Juntos, governos estaduais e municipais tiveram um superávit de quase R$ 100 bilhões, o melhor desempenho da história. Com exceção da reforma da Previdência promovida por alguns governos, os principais fatores responsáveis por isso são circunstanciais. É o caso das transferências federais extraordinárias para lidar com a pandemia e da inflação alta, que ampliou a arrecadação de impostos sobre o consumo, como o ICMS.

De todos os fatores, dois se sobressaíram. A arrecadação foi turbinada pela retomada da economia, como sempre ocorre depois de recessões. Mas as despesas não subiram na mesma velocidade, sobretudo porque reajustes salariais foram proibidos até o fim de 2021. Descontada a inflação, os gastos com pessoal dos estados no ano passado recuaram 5% na comparação com 2020. Foi o que deu fôlego fiscal aos governadores.

No caso do Rio, as novas circunstâncias fortaleceram a condição do estado na tentativa de aderir ao novo Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Uma primeira versão do plano foi enviada a Brasília no ano passado e rejeitada. Um novo texto foi reapresentado na sexta-feira. A avaliação é que houve avanço ao restringir o reajuste dos servidores a este ano, mas a manutenção de promoção automática a cada três anos (triênio) para os servidores da ativa — benesse há muito banida noutras esferas — precisa ser revista, pela deterioração que causa nas contas do estado.

De modo geral, os governadores certamente sentiram os benefícios do resultado positivo em 2021. Os investimentos dos 26 estados e do Distrito Federal cresceram 84% no ano passado. Comparado a 2017, penúltimo ano do mandato dos governadores anteriores, o aumento de 2020 foi da ordem de 47%. Agora, interessados em agradar ao funcionalismo antes das eleições, pelo menos 13 governadores deram reajustes salariais. Rio, Bahia e Ceará estão entre os que deram aumentos lineares a todos. São Paulo anunciou aumento maior para profissionais da Saúde e da Segurança Pública.

Em vez de aproveitarem a oportunidade aberta pela redução da folha de pessoal para promover um ajuste fiscal sólido, é triste ver que cálculos eleitoreiros de curto prazo estão falando mais alto. A pandemia não foi capaz de acabar com a nefasta prática política de beneficiar um pequeno grupo — o funcionalismo — em detrimento da maioria da população. Fica a pergunta: o que mais falta para que caia a ficha?

Bonança estadual

Folha de S. Paulo

Governadores têm sobra no caixa por motivos circunstanciais, o que traz riscos

Os governadores, ou pelo menos a maioria deles, iniciam este ano eleitoral com boa sobra de dinheiro em caixa, o que parece destoar da situação geral de penúria do setor público nacional nos últimos anos. As circunstâncias que permitiram essa relativa fartura, contudo, levam a incentivos perigosos.

Há entre os estados bons exemplos de disciplina fiscal e avanços em reformas previdenciárias e administrativas. No entanto a maior parte da melhora rápida nas contas decorre de fatores momentâneos, nem todos desejáveis.

O primeiro deles foi o socorro financeiro emergencial obtido na União em 2020, com o objetivo de aplacar os impactos da pandemia. A medida votada pelo Congresso, que tinha objetivos corretos, mostrou-se mal desenhada.

Pelos cálculos do Tesouro Nacional, os benefícios aos estados somaram mais de R$ 70 bilhões naquele ano, entre transferências diretas de recursos e suspensão temporária do pagamento de dívidas. A dinheirama, soube-se logo, superou com folga a perda de arrecadação e as despesas extraordinárias impostas pela Covid-19.

Em 2021, ademais, a receita de impostos experimentou vigoroso crescimento —em parte devido à recuperação da economia, em parte devido à contribuição espúria da escalada inflacionária.

Os números mostram com eloquência o fortalecimento repentino dos caixas estaduais e do Distrito Federal. O superávit primário conjunto dessas unidades da Federação saltou de R$ 16,3 bilhões em 2019 para R$ 38,3 bilhões em 2020 e R$ 78,2 bilhões no ano passado.

A folga orçamentária permitiu também expressivo aumento dos investimentos —em sua maioria, obras que normalmente são ativos importantes em eleições. Segundo noticiou o jornal Valor Econômico, essa modalidade de despesa atingiu 75,9 bilhões em 2021, o que representa alta de 83,6%.

Os recursos começam agora a ser empregados em reajustes salariais para o funcionalismo, que até dezembro estavam vedados pelas normas do socorro federal. Como mostrou a Folha, ao menos 13 governadores —como o de São Paulo, João Doria (PSDB)— já anunciaram aumentos para servidores.

Ainda faltam dados para uma avaliação de todos esses gastos, mas a experiência aponta riscos óbvios. No caso dos investimentos, uma elevação brusca e talvez apressada pode contemplar projetos mal elaborados e, nas piores hipóteses, favorecer a corrupção.

Já os encargos com pessoal são despesas permanentes que respondem pela maior fatia dos Orçamentos dos estados. Imprudências nessa rubrica, como se viu nos anos recentes, podem resultar em suspensão futura de pagamentos e ameaçar os serviços essenciais de educação, saúde e segurança.

Idas e vindas

Folha de S. Paulo

Prefeitura retoma programas para sem-teto de SP e expõe chaga da descontinuidade

Diante da multiplicação dramática da população de rua, sobretudo de famílias vítimas do desemprego, a Prefeitura de São Paulo anunciou novas medidas de acolhimento e proteção social. Algumas, inclusive, reciclam políticas abandonadas por gestões anteriores.

Em troca de um valor ainda não definido, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) planeja a contratação de mil sem-teto para cuidar da varrição e manutenção de canteiros e jardins.

Algo semelhante ocorreu no extinto De Braços Abertos, do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). Ainda que a prioridade fossem dependentes químicos da região da cracolândia, o programa também remunerava os atendidos, além de disponibilizar vagas em hotéis, mediante execução de serviços de zeladoria —com a contrapartida de que aceitassem tratamento médico.

Alvo de críticas da oposição, a iniciativa acabou após a eleição do então prefeito João Doria (PSDB). Criou-se no lugar o Redenção, que preconizava a internação dos dependentes em clínicas psiquiátricas. O programa, depois, atrelou-se ao Trabalho Novo: este estimulava a capacitação laboral de moradores de rua antes de encaminhá-los a vagas na iniciativa privada.

Ambos, contudo, foram suspensos pelo sucessor de Doria, o também tucano Bruno Covas: o primeiro devido à alta rotatividade de internações; o outro por não cumprir a meta de 20 mil empregos em 12 meses —foram 2.626 contratações em dois anos de vigência.

A nova aposta, já sob o comando de Nunes, ganhou a alcunha de Reencontro. De certo modo, pretende-se repetir a oferta de habitações transitórias —abrigar famílias por até 12 meses em casas modulares no centro— e preparação "profissional e socioemocional" dos sem-teto para aproveitar a mão de obra em atividades sob responsabilidade da administração.

A descontinuidade de programas ao sabor do governante de turno é uma chaga da vida pública nacional que não respeita nem mesmo afinidades partidárias, como mostram Doria, Covas e Nunes, frutos de um mesmo projeto político.

Decerto o modelo mais assertivo para atenuar os efeitos de um crescimento de 31% da população de rua durante a pandemia (31.884 pessoas), a combinação moradia e emprego exige persistência e investimentos de longo prazo, independentemente de interesses eleitorais ou inclinações ideológicas.

Faz de conta na agenda legislativa

O Estado de S. Paulo

Mais do que uma carta de intenções, a lista de 45 projetos prioritários do governo no Congresso é admissão pública de ineficiência

Como tudo na administração Jair Bolsonaro, a agenda legislativa prioritária do governo federal para este ano é mais uma peça de ficção de sua desesperada campanha à reeleição. Assinada pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, a portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU) conta com nada menos que 45 itens, entre medidas provisórias, projetos de lei e propostas de emenda à Constituição (PECS). Dentre eles, há seis ideias “em formulação no Executivo” ou “em formulação no Congresso Nacional”. A lista é a representação de uma gestão sem rumo, presidida por um eterno candidato que se recusa a assumir as funções para as quais foi eleito há mais de três anos e que mantém um falso otimismo sobre sua capacidade de articulação política em um Congresso dominado pelo Centrão, que governa em seu lugar.

De que outra forma a sociedade deveria julgar o fato de que o Executivo ainda diz acreditar na aprovação da proposta que cria a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS) e unifica contribuições federais como PIS e Cofins? Apresentado em julho de 2020, o projeto não registra qualquer movimentação processual desde junho. Faz parte da mesma lista a PEC 110/2019, conhecida como reforma tributária do Senado, que extingue nove tributos, entre eles PIS e Cofins, além de impostos estaduais e municipais, para criar o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) – publicamente boicotada pelo ministro Paulo Guedes. Como se pretende compatibilizar duas propostas conflitantes e que tratam dos mesmos tributos é uma incógnita. Não satisfeito com o manicômio tributário vigente no País há décadas, o governo mantém a aposta no projeto do Imposto de Renda, cujo relator, Ângelo Coronel (PSDBA), já deixou claro que pretende apenas corrigir a tabela do Imposto de Renda e retirar a tributação sobre lucros e dividendos, que bancaria o Auxílio Brasil.

A obsessão bolsonarista pelo preço dos combustíveis também está presente em dois dos itens: o projeto que muda a cobrança de ICMS sobre os produtos, hoje um porcentual sobre o preço, para um valor fixo por litro; e o projeto “em formulação no Congresso Nacional” que mexe na tributação federal sobre o diesel – alvo de ao menos três propostas, uma delas a PEC Camicase, que pode custar mais de R$ 100 bilhões aos cofres públicos. Faz parte do rol de devaneios a privatização dos Correios, com chance mínima em um Senado em ano eleitoral. O próprio Bolsonaro já admitiu que a possibilidade de aprovação de qualquer reforma neste ano é ínfima. Ao menos numa coisa a lista é verdadeira: dela não consta uma reforma administrativa, que Bolsonaro desde sempre rejeita.

Na área política, o fracasso também se repete. Para atiçar os seguidores mais radicais, Bolsonaro reitera o aval à chamada pauta de costumes, defendida há três anos praticamente sem avanços. Há projetos para flexibilizar ainda mais o porte, posse, registro e comercialização de armas e munições, revogar o auxílio-reclusão, reduzir a maioridade penal e vedar a saída temporária de presos. Em formulação no Executivo, há também um projeto para ampliar a retaguarda jurídica de policiais. Criticado pelo desmazelo na área ambiental, o governo ainda aposta na polêmica liberação da mineração em terras indígenas e em áreas de fronteira. Na educação, certamente a área mais afetada depois de quase dois anos de pandemia e de escolas fechadas por meses, a preferência, inacreditavelmente, continua a ser pela regulamentação do ensino domiciliar, além do fim da progressão continuada – evidentemente sem propor nada em seu lugar.

Mais do que uma carta de intenções, a agenda é o reconhecimento público da própria ineficiência do governo. Quando os mais otimistas avaliam que o Legislativo funcionará só até junho, uma lista de 45 prioridades revela que, na verdade, não há nenhuma. Mesmo com o apoio de um Congresso comprado à base de emendas, a gestão Bolsonaro chegará ao fim sem aprovar os arremedos de reformas econômicas que propôs e, ainda bem, sem os desvarios que prometeu à sua base mais radical.

América Latina é crucial para o Brasil

O Estado de S. Paulo

O acordo comercial com o Chile e a defasagem das exportações para a Argentina relembram a importância de o País assumir o protagonismo na integração da região

Em 25 de janeiro entrou em vigor o Tratado de Livre Comércio entre Brasil e Chile. O país andino é o quinto maior destino das exportações do Brasil. O acordo negociado pelo governo Temer avança o processo de abertura iniciado em 1996 e é um dos mais modernos assinados pelo Brasil. Ele promove a redução de custos aduaneiros e cobre 17 áreas, entre serviços, compras governamentais, boas práticas regulatórias e investimentos estrangeiros. Por outro lado, em 2021 o Brasil perdeu para a China o posto histórico de maior exportador à Argentina. Os dois fatos revelam a importância para o País, especialmente para a sua indústria, de revitalizar as estratégias de integração com a América Latina.

É uma cláusula pétrea da Constituição

que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latinoamericana de nações”.

Em tese, o País tem todas as condições de liderar o processo de integração latino-americana. Na América do Sul, é o único que aglutina elementos de uma potência regional: ele faz fronteira com 11 dos 13 países da região; responde por 55% do seu PIB; é uma democracia multiétnica das mais plurais do mundo; tem uma população e um mercado consumidor de grande porte; e riquezas naturais, como minérios estratégicos, petróleo, abundância de água e uma biodiversidade incomparável.

O imenso potencial energético só aumentou com o processo de transição para a economia de baixo carbono. O país é uma superpotência agropecuária, tem a economia mais diversificada da região, o maior parque industrial e um razoável desenvolvimento tecnológico.

No entanto, o contraste entre essas potencialidades e a realidade é chocante. Nos últimos anos, o Brasil não apenas foi incapaz de protagonizar a liderança na integração latino-americana, como tem perdido espaço como parceiro comercial dos países da América do Sul.

Em conjunto, esses países continuam sendo o quarto principal destino das exportações brasileiras e a quarta principal origem. Mas entre 2010 e 2019, segundo a Confederação Nacional da Indústria, enquanto as importações globais da América do Sul subiram 12,9%, as exportações do Brasil para a região caíram 24,7% e as importações, 20,4%. O maior impacto é sobre os produtos manufaturados, que respondem por 82% das exportações brasileiras para o Cone Sul.

A contração tem múltiplas causas. Há fatores externos, como a queda do crescimento econômico da região e o crescimento da China; internos, como a perda de competitividade da indústria nacional ou a suspensão das reformas no Brasil; e multilaterais, como a paralisação de uma agenda de acordos do Brasil com esses países, ao mesmo tempo que eles ampliaram seus acordos com grandes economias.

Em plena quarta revolução industrial, em um cenário incerto para a economia globalizada, a retomada de uma agenda de integração na América Latina é fundamental. Isso implica, para o Brasil, promover o aprofundamento das relações do Mercosul, concomitantemente à flexibilização de regras obsoletas que obstaculizam a abertura a outras regiões do mundo; à internalização de acordos mais abrangentes, como o que entrou em vigor com o Chile e o que foi firmado com o Peru; e à ampliação de acordos bilaterais com outros países vizinhos.

Além da integração comercial, é preciso especial atenção a outras áreas que podem potencializá-la, como a energia e, particularmente, a infraestrutura, que pode tanto facilitar o intercâmbio brasileiro com a América do Sul como para a Ásia, a partir de portos no Peru e no Chile. A integração deveria entrar não apenas na agenda da diplomacia oficial ou do empresariado, mas dos governos regionais, academia e a sociedade civil em geral.

Pelas suas condições geográficas e culturais, o destino do Brasil está irrevogavelmente atrelado ao da América Latina. É lamentável que o dito de Franco Montoro, embora seja um truísmo, tenha sido tantas vezes esquecido nas esferas de poder brasileiras: “Para a América Latina, a opção é clara: integração ou atraso”.

A cartilha que Bolsonaro não lê

O Estado de S. Paulo

Como levar a sério o manual de conduta da AGU quando Bolsonaro é o primeiro a fazer letra morta das recomendações?

A Advocacia Geral da União (AGU) fez chegar aos ministros de Estado e demais servidores da administração pública federal que desejam ser candidatos nas eleições gerais deste ano uma cartilha com orientações para que não incorram em práticas que possam ser consideradas abuso de poder político ou econômico e, assim, venham a ter seus registros impugnados pela Justiça Eleitoral, além de prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro à reeleição.

Tanto o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin, como o ministro Alexandre de Moraes, que presidirá a Corte ao tempo das eleições de outubro, já deram declarações bastante claras de que serão rigorosos na aplicação da legislação eleitoral. Trata-se de uma obviedade que não mereceria destaque noutros tempos, mas que, de fato, precisa ser ressaltada nesta estranha quadra da história nacional.

“A Justiça Eleitoral tem competência para aplicar penalidades em casos que julgue ter havido abuso de poder político ou econômico”, diz trecho do documento da AGU. “Atos do governo, ainda que formalmente legais, podem ser entendidos como abusivos se, de algum modo, puderem ser associados com a concessão de benefícios a certo candidato, partido ou coligação.”

Não é possível afirmar que tenha sido esse o motivo da preparação da cartilha pela AGU, mas o fato é que o documento chegou aos ministros e servidores federais poucos dias após um comício no Rio Grande do Norte em que o ex-senador Magno Malta pediu votos de forma ostensiva para o presidente Jair Bolsonaro, que estava ao seu lado. “Precisamos reconduzir este homem ao poder, à reeleição”, disse Malta.

Nada configura tão cabalmente um ato de campanha eleitoral antecipada como o pedido direto ou indireto de votos antes do tempo autorizado por lei. Nas mãos de um procurador eleitoral mais cioso de seus deveres constitucionais, o comício no Rio Grande do Norte poderia atribular a campanha de Bolsonaro pela reeleição. Noticiou-se que o caso teria “preocupado” o Palácio do Planalto, mas é improvável que vá além do susto, dada a leniência da Justiça Eleitoral em relação a campanhas antecipadas – basta lembrar a impune desenvoltura de Lula da Silva, aquele que jamais desceu do palanque, nem quando esteve preso.

Em que pesem os bons ventos republicanos que levaram a AGU a preparar e divulgar um manual de conduta que orienta os servidores federais a tão somente cumprirem a lei, nada além disso, é muito difícil levar o documento a sério quando o próprio presidente da República, ninguém menos, é useiro e vezeiro em fazer letra morta de todas aquelas recomendações.

Jair Bolsonaro está em campanha eleitoral descarada desde sua posse, usando em comícios, sem qualquer constrangimento e sem ser incomodado pelos órgãos de controle e fiscalização, os recursos públicos que deveriam pagar os custos do exercício da Presidência. E tudo isso com o único objetivo de se aferrar ao poder, não para entregar um Brasil melhor a seu sucessor, mas para retardar tanto quanto possível o seu inevitável acerto de contas com a Justiça.

Curva de juro nos EUA reflete incerteza sobre ação do Fed

Valor Econômico

Todas essas discussões colocam em evidência as incertezas sobre o processo de retirada de estímulos monetários

O que à primeira vista parece apenas um assunto técnico - a inclinação da curva de juros americana - sintetiza o debate entre os economistas e os participantes do mercado financeiro sobre as chances de sucesso da política de combate à inflação do Federal Reserve (Fed).

A curva de juros do Tesouro americano está muito achatada. Os juros dos papéis de dez anos subiram recentemente para o patamar de 2% ao ano, pouca coisa acima dos juros de curto prazo, que nos últimos dias rondam 1,6% ao ano. Essa diferença entre as taxas, de cerca de 0,4 ponto percentual, é a menor observada desde abril de 2020.

Em outros tempos, a pouca inclinação da curva de juro era associada a recessões. Isso ocorria quando o mercado achava que o Fed estava exagerando na dose de aperto monetário para conter a inflação e, mais adiante, teria que afrouxar de novo para combater a queda da economia.

Aqui e ali, as mesmas preocupações estão ressurgindo, depois que o Fed endureceu a sua comunicação. O chairman do BC americano, Jerome Powell, deixou em aberto todas as hipóteses, inclusive altas de juro de 0,25 ponto percentual em cada uma das sete reuniões que restam neste ano. O presidente do Fed de St. Louis, James Bullard, vem advogando pelo menos uma alta de juro de 0,5 ponto percentual nos “fed funds” nas duas próximas reuniões.

O receio, entre uma corrente de analistas, é que, depois de ficar atrás da curva no ciclo de aperto monetário, o Fed possa agora exagerar na dose. Em paralelo à retirada dos estímulos monetários, a economia americana vai sofrer uma severa contração fiscal neste ano, com o fim dos programas de transferência de renda criados durante a pandemia.

Há também as antigas reclamações de que o Fed está adotando um remédio amargo e pouco eficaz para uma inflação que tem origem em restrições de oferta, como as rupturas nas cadeias globais de produção.

A outra explicação para a falta de inclinação na curva de juros é justamente a ação do próprio Fed no resgate da economia durante a pandemia, com seu programa de expansão quantitativa (o QE, na sigla em inglês). Apenas durante a crise do coronavírus, o BC americano comprou perto de US$ 5 trilhões em ativos, como títulos do Tesouro e papéis imobiliários, levando seu balanço a US$ 8,9 trilhões. É bem possível que essa intervenção esteja por trás da queda dos juros de longo prazo, embora alguns economistas duvidem que o QE tenha tido efeitos muito fortes e duradouros.

Apesar da aceleração da inflação, o Fed continuará a comprar ativos no mercado até o começo de março, ainda que com uma intensidade menor. O ex-secretário do Tesouro americano Larry Summers vem defendendo que o BC americano suspenda imediatamente o QE.

O mercado financeiro discute como será feita a reversão da expansão quantitativa, com crescente receio de um aperto quantitativo. Ou seja, da mesma forma que comprou os ativos no passado, o Fed passaria vendê-los, em vez da estratégia mais suave e gradual de não rolar os ativos quando chegarem a vencimento.

Um dos principais argumentos a favor dessa abordagem mais radical é que, enquanto a curva de juros seguir achatada, a alta do juro de curto prazo pelo Fed vai se transmitir apenas de forma parcial pela economia. Não é uma discussão trivial - um movimento mais brusco poderia causar turbulências nos mercados semelhantes ao “taper tantrum”, de 2013, quando o então presidente do Fed Ben Bernanke anunciou uma redução no ritmo de compras de ativos.

Há quem diga, porém, que esse temor deveria ser revisto, como o presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto. Para ele, os níveis de alavancagem dos mercados financeiros estão bem inferiores, quando comparados com 2013, por isso o risco de ruptura é menor.

Todas essas discussões sobre a causa - e a solução - para a baixa inclinação da curva dos juros nos Estados Unidos colocam em evidência as incertezas sobre o processo de retirada de estímulos monetários. À primeira vista, o Brasil tende a sair ganhando se os Estados Unidos agirem contra a sua inflação doméstica, que é uma das origens da pressão nos índices de preços que nos afeta também. Mas o processo de desinflação tende a ser penoso e sujeito a solavancos. Até agora, não temos sido muito afetados pelas mudanças na política monetária dos Estados Unidos, mas o cenário pode mudar.

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