Folha de S. Paulo
A desonestidade do Estado e de parte da
sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora
A perversa e persistente estratégia de
desenvolvimento nacional, fundada em altos níveis de concentração de renda,
baixos padrões
educacionais, desigualdade social, racismo
estrutural e na violência e
arbítrio como formas de ordenação social, nunca foram tão evidentes como no
presente momento.
Dois relatórios publicados recentemente escancaram o quanto a sociedade brasileira, leia-se os adultos, temos descumprido nossas obrigações, plasmadas no artigo 227 da Constituição Federal, de assegurar às crianças e adolescentes "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação... à dignidade..., além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
A desonestidade do Estado e de parte da
sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora, comprometendo não apenas
o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil, mas, também, a
própria aspiração de vivermos em paz, sob o estado
democrático de direito.
O movimento Todos pela
Educação, que vem mapeando o desempenho da educação brasileira nas
últimas décadas, sinaliza em seu último relatório um preocupante crescimento
de 66,3% no número de crianças, entre 6 e 7 anos, que não foram alfabetizadas.
Se é fato que uma parcela substantiva desse
crescimento se deve à Covid-19 e ao fechamento das escolas públicas, onde
estudam mais de 80% de nossos alunos, predominantemente pobres, o que mais
preocupa, como argutamente aponta Claudia Costin,
nesta Folha, é que esse crescimento se dá sobre um número já extremamente
alto de crianças —cerca de 55%— que não se encontra alfabetizada no 3º. ano do
ensino fundamental. Mantidos esses padrões educacionais, o Brasil jamais
conseguirá ingressar numa economia cada vez mais pautada no conhecimento,
ficando fadado à produção de commodities.
Nossas crianças não têm apenas uma educação
deficiente, em face de políticas educacionais insuficientes. Como aponta o
relatório "Tiro no Futuro", recentemente publicado pelo Centro de
Estudos de Segurança Pública e Cidadania (CESeC), a violência, em grande medida
decorrente de uma política equivocada de "guerra às drogas", tem tido
um forte impacto sobre a trajetória educacional, psíquica e social de jovens
que vivem em comunidades, encontrando-se expostas ao tráfico, a operações
policiais bélicas, tiroteios e balas perdidas.
Nada menos do que 1.115 escolas públicas
ficaram expostas aos 4.346 episódios de trocas de tiros registrados na cidade
do Rio de
Janeiro, em 2019. Os alunos de 57% dessas escolas presenciaram dez
tiroteios; de 11% das escolas, 30 tiroteios; já as crianças de 0,3% dessas
escolas ficaram expostas a 95 casos de troca de tiros em um único ano.
Os pesquisadores apontaram as perdas
educacionais coletadas junto à secretaria de educação e estimaram as perdas
econômicas decorrentes da exposição à violência. Indicam, no entanto, que há
inúmeras outras sequelas que acompanharão esses alunos ao longo de suas vidas.
Chamo a atenção, aqui, para a dificuldade
que essas crianças, que não tiveram seus direitos mais básicos respeitados,
terão em se conformar ao Estado de Direito. A insinceridade dos adultos e do
Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações morais e legais em nada
favorecerá a que esses jovens reconheçam os códigos de respeito recíproco
indispensáveis numa sociedade democrática. Sem que sejamos capazes de
reconfigurar nosso projeto de desenvolvimento, estaremos conspirando contra o
futuro de nossos próprios filhos e netos.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Rio de Janeiro virou cenário pra filme de bang-bang.
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