quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso: Populismo, subsídios e atraso

Valor Econômico

Políticas distorcivas e expansionistas não levam em conta suas implicações futuras por puro cálculo eleitoral e projeto de poder

Se há algo que une a esquerda e a direita latino-americanas é a vocação para o populismo, que se concretiza na farta distribuição de benesses a aliados políticos e eleitores. São medidas que geram ganhos no curto prazo, mas irremediavelmente levam a perdas para toda a sociedade no médio e longo prazos. Neste momento, Argentina, com um governo peronista de esquerda, e Brasil, com um governo de direita, dão exemplos de até onde a irresponsabilidade pode ir para um governante se manter no poder.

A Argentina negocia a renovação de seu acordo com o FMI. Sem reservas cambiais para pagar parcelas vincendas de empréstimos anteriores junto ao Fundo, não há outra alternativa na mesa - certamente não de atores privados - capaz de impedir o calote e o caos financeiro. O país já vive uma situação econômica delicadíssima, com inflação acima de 50% ao ano, déficit fiscal endêmico e expansão constante dos gastos públicos. Além de uma enorme gama de subsídios há também distorções de todo tipo, como controles de preços e de capitais, proibição de exportações, e um mercado de dólar paralelo onde a cotação, muitas vezes, supera 100% da oficial.

Ainda assim a esquerda peronista, capitaneada por Cristina Kirchner e seu filho Máximo, ex-líder do governo no Congresso, se opõe ferrenhamente ao acordo com o FMI, que implantaria reduções de subsídios e corte moderado de gastos. Opõe-se não só ao acordo, mas a qualquer medida de ajuste. O discurso é conhecido: o culpado pela inflação são os grupos monopolistas malvados, e pelo desemprego o próprio FMI, de modo que o acordo só pioraria a situação dos pobres. Não há qualquer proposta alternativa mais consistente, somente rejeitar o acordo e continuar expandindo os gastos. O objetivo é claro: manter políticas que beneficiam seus grupos de apoio e potenciais eleitores, mesmo que logo à frente a inflação aumente e o caos se instale.

No Brasil o exemplo mais recente é a absurda proposta de redução - quiçá eliminação - de impostos sobre os combustíveis em discussão no Congresso. Bolsonaro a defende porque os caminhoneiros fazem parte de sua base eleitoral, enquanto parlamentares querem alegrar consumidores em ano eleitoral. Aqui, ao contrário da Argentina, onde se pode alegar cegueira ideológica, há somente um oportunismo gritante, embora as consequências sejam tão ruins quanto em nosso vizinho.

Dependendo da versão que for aprovada, o custo anual dessa medida será de R$ 50 bilhões a R$ 100 bilhões, algo entre 0,6% e 1,2% do PIB. O Ministério da Economia já se colocou contrário à proposta, mas os aliados de Bolsonaro querem aprová-la, no intuito de ajudar o capitão na eleição. Como a pasta encontra-se hoje esvaziada e sem poder político, é provável que se aprove um corte significativo de impostos. A proposta causa pelo menos três problemas sérios.

O primeiro e mais imediato é que agrava sobremaneira o desequilíbrio fiscal, em um momento que o governo já fala em contingenciamento dos gastos. Isto, claro, afetará expectativas sobre a trajetória futura da inflação e sobre uma desejável redução dos juros, o que tenderá a adiar a retomada dos investimentos, inibindo ainda mais a retomada da economia. Com a previsão de crescimento do PIB para 2022 já próxima de zero, o cenário acima aponta para uma possível recessão.

O segundo ponto é que a proposta altera um preço importantíssimo da economia, com efeito sobre todas as cadeias produtivas. Estimula-se o uso mais intensivo e/ou a adoção de tecnologias que não seriam adotadas num ambiente de tributação neutra por um IVA com alíquota única, por exemplo. Se o subsídio for só para o diesel - usado pelos caminhões - prejudicará outros modais de transporte, como cabotagem e aviação. No médio e longo prazo essas distorções trarão perda de eficiência e queda da produtividade, já que não se fará o melhor uso dos recursos disponíveis.

Além disso, a proposta estimula o uso de uma energia altamente poluente, quando se deveria incentivar sua substituição por fontes mais limpas, como álcool e gás. O uso mais intensivo de diesel e gasolina colabora, via emissão de gás carbono, para o aquecimento global que já vem trazendo desequilíbrios climáticos, como secas e enchentes, prejudicando a produção agrícola e a vida de todos brasileiros.

Fora isso, não custa lembrar que as isenções tributárias do governo Dilma Rousseff, que deveriam vigorar por dois anos, foram renovadas sucessivamente, por pressão dos beneficiados. Estas saltaram de 2% para 4% do PIB durante o governo Dilma. Nada mais permanente do que uma isenção temporária. Não há razão para acreditar que será diferente agora.

O corte de impostos sobre combustíveis proposto pelo atual governo aproxima uma vez mais o populismo de direita do de esquerda. Esse tipo de medida explica boa parte da estagnação do Brasil, Argentina e outros países da região nas últimas décadas. Políticas distorcivas e expansionistas não levam em conta suas implicações futuras - ineficiência, inflação, incerteza, altos juros, etc. - por puro cálculo eleitoral e projeto de poder. Dilma, Bolsonaro e os peronistas argentinos têm muito mais semelhanças que seus seguidores gostariam de admitir.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento

*Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).

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