O Globo
Uma das mais bonitas histórias que compõem
a mitologia em torno de Pelé é de um jogo amistoso com aquela lendária equipe
do Santos, realizado em 1969 na Nigéria, que fez com que fosse decretado um
cessar-fogo de um dia na Guerra de Biafra. “Só o Santos parou a guerra/com Rei
Pelé bi-mundial”, diz um grito de guerra da torcida santista.
A julgar pelos animadores de outra torcida,
a bolsonarista, não mais. Produtores de memes e narrativas da bolsolândia
passaram o dia associando, na brincadeira, a ida de Bolsonaro a Moscou com as
indicações do governo Vladimir Putin de que poderia retroceder em seus avanços
sobre a Ucrânia.
Um dos que puxaram o cordão das piadas sem
graça foi o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que, defenestrado do
posto porque estava queimando demais o filme até para os padrões desta gestão,
agora ocupa seu tempo tentando fazer média com a ala mais sectária do
bolsonarismo para disputar algum cargo eletivo em outubro.
Questionado pelo papel ridículo, quis pespegar a “imbecilidade” em quem a apontou, e não em quem a produziu, no caso, ele próprio.
Salles, como sempre arrogante, diz que é
óbvio que se trata de uma brincadeira. De fato, no plano “limpinho” em que ele
postou os memes segundo os quais a visita ainda nem iniciada do presidente
brasileiro a Moscou teria algo a ver com o recuo de Putin, as chances de isso
encontrar alguma aderência são pequenas, quase nulas.
Mas, no submundo dos grupos de WhatsApp e do
Telegram, sem nenhum controle ou possibilidade de contraponto por parte da
imprensa, de analistas internacionais ou de quem quer que seja, os relatos do
“sucesso” da viagem de Bolsonaro ganham ecos de verdade e neutralizam uma das
constatações que mais incomodam o entorno do presidente: a de seu isolamento
internacional e da imagem péssima de que goza junto às democracias ocidentais.
Nesses ambientes, a data da viagem de
Bolsonaro, as razões do conflito russo-ucraniano, os alinhamentos dos demais
países nessa tensão ou a agenda que o brasileiro cumprirá na curta estadia
cercada de cuidados sanitários passam longe. Vale a narrativa sem nenhum
contexto segundo a qual Bolsonaro é admirado pelo líder “conservador” de uma
grande potência e tem bom trânsito mesmo quando as coisas não vão bem.
Pouco importa que o Brasil não tenha
absolutamente nada a ver com o desfecho da escalada retórica e militar na
região.
Esse mundo paralelo em que se constrói, não
de hoje, a reputação de Bolsonaro como mito pouco foi afetado pela realidade
que mostra imenso desgaste do presidente pela condução desastrosa da pandemia,
pelo desemprego galopante e pela inflação descontrolada. A primeira seria culpa
de governadores e dos defensores da vacina. As duas últimas, também dos governadores,
pelo “fecha tudo” da pandemia.
Trata-se do Bolsoverso, para usar uma
referência bastante em voga dadas as muitas obras literárias e audiovisuais que
exploram o tema dos multiversos.
Nada indica que haverá sucesso nos esboços
de tentativa da Justiça Federal de penetrar nesse mundo invertido e de
regulamentar de alguma maneira seu uso como propagador de desinformação, que
vai dos memes e “brincadeiras” apenas pretensamente inocentes a mentiras e
discursos de ódio pesados, muitas vezes criminosos contra adversários políticos
e instituições como o próprio Judiciário e a imprensa.
As eleições de 2018 mostraram apenas um
trailer desse filme, que vem sendo escrito ao longo dos anos de mandato do
capitão, foi tangenciado em reportagens e nos inquéritos do Supremo Tribunal
Federal, mas está longe de ser conhecido e combatido. Enquanto pessoas como
Salles “brincam” na superfície, esse embuste narrativo chega às senhoras do zap
como feito heróico do candidato que mais sabe fazer uso dessas ferramentas no
Brasil.
Marilyn Monroe,dizem,foi outra que,com sua beleza fulminante,parou uma guerra.
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