Folha de S. Paulo
Mais do que tirar gente de área de risco, é
preciso fazer uma grande e dura reforma urbana
A música "Barracão" faz 70 anos
neste 2022. Talvez apenas os mais velhos se lembrem: cantava o "barracão
pendurado no morro, pedindo socorro à cidade a teus pés", "barracão
de zinco, pobretão, infeliz". Foi composta por um oficial do Exército e
pracinha, Luiz Antônio, com Oldemar Magalhães.
O barracão não é mais de zinco. Nas favelas
mais novas de São Paulo, é de madeira. Em geral é de alvenaria sem reboco,
periclitante sobre fundação ruim ou nenhuma, muita vez à beira de um talude
instável, de um córrego imundo ou de uma represa de água em tese potável. Mas
há bairros "regularizados" de casas melhorzinhas à beira do
precipício.
Há barraquinhas também. Muitos deserdados da vida decente moram agora em tendas de camping, vários nas ruas próximas à avenida Paulista, que é um limite de um conjunto de bairros muito ricos chamado de "Jardins". É o cortiço na calçada.
Os barracões pobretões são diversos, pois.
De comum, têm o risco de morte. Nos verões do século 21, quando não há seca, há
morticínio como nos verões mais antigos: Petrópolis, Franco
da Rocha, Minas etc. As casinhas desabam ou são soterradas, a rotina
sabida, assim como é rotina sazonal a conversa que se segue, sobre "áreas
de risco" e falta de planos, de investimentos ou de providências
de emergência, como sirenes.
É tudo verdade, mas é também desconversa.
Na cidade de São Paulo, há cerca de 175
mil moradias sob risco de ruína. Pela média de habitantes por casa, seriam
509 mil pessoas (devem ser mais: pobres são obrigados a viver em aglomeração).
Se o problema de habitação se resumisse ao de morte
por soterramento, seria preciso resolver o problema de meio milhão de
pessoas --mas há ainda a gente largada na rua, em cortiços e em outros moquifos
desumanos.
A desconversa está em dizer que é "preciso
remover as pessoas da área de risco", como se fosse o caso de colocar
as pessoas numa van do PCC e
alojá-las em um hotelzinho. Sim, é preciso tomar alguma atitude para que menos
gente morra já amanhã. Mas o problema essencial é o da desigualdade do uso do
chão.
O horror que é a cidade brasileira, a
grande em particular, resultou também da falta de reforma agrária, quando algo
que merecia esse nome grandioso fazia sentido econômico e social. Agora, o
problema é a reforma urbana, nome vago e tecnocrático para a distribuição menos
iníqua de espaço para moradia e transporte, para ficar no grosso.
Os pobres moram mal e longe em parte porque
muito terreno central é reserva de valor sem uso social. Passam horas no trânsito também
porque o chão é tomado por carros particulares. Os mais ricos se apropriam de
investimento público, pelo uso dos benefícios e pela valorização de seus
imóveis, subsidiada pelo governo. Metrô, ruas melhores, parques e outras
comodidades, mais comuns em áreas ricas, são bancadas por dinheiro de impostos.
Reforma urbana quer dizer redistribuir
benefícios e, em última análise, desapropriar: recuperar os bens públicos
apropriados desigualmente e punir a propriedade ociosa. É fácil perceber que
uma conversa séria sobre "áreas de risco", "plano diretor"
e "moradias inadequadas" causa escândalo.
Quem se ocupa do assunto? O MTST do
Guilherme Boulos, que apenas existe por causa do horror, e urbanistas de
esquerda. Quase político algum trata disso. Em São Paulo, essa conversa pode
ser sentença de morte eleitoral, vide as fúrias por causa de IPTU progressivo
ou faixas
de ônibus.
Se tudo desse certo, levaria décadas para
arrumar esse horror. É preciso imposto, regulação e também indução de
investimento privado, pois governo apenas
não vai ter dinheiro. Mas é uma prioridade social maior.
O que é mais grave,morar na rua ou em área de risco?
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