domingo, 27 de março de 2022

Bernardo Mello Franco: Brado retumbante

O Globo

O governo tem sido cobrado a apresentar um plano para celebrar o bicentenário da Independência. Talvez seja melhor deixar a ideia para lá. Uma campanha da Secretaria Especial da Cultura expõe a visão bolsonarista da efeméride. É uma visão caricata, apoiada em patriotadas e mistificações.

“A Independência do Brasil foi conquistada com um brado. Nossa liberdade, anunciada com uma exclamação”, derrama-se o site oficial. “Na bravura, que arde como brasa, se revigora o espírito patriótico que, um dia, apontando o céu, nos bradou a liberdade”, prossegue.

O portal também carrega nas tintas ao descrever Pedro I. O herdeiro da Coroa portuguesa emerge como um herói sem defeitos. “Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada. Refletindo nela a luz do sol, ao som das águas do Ipiranga, ecoou a voz em forte grito. Pela força de sua coragem, derrotou os que nos aprisionavam. Com a ousadia de sua afronta, fez soberana a nossa nação”, exalta o texto chapa-branca.

O palavrório falsifica a história ao narrar uma Independência fictícia. A cena épica só existiu na imaginação de Pedro Américo, autor do quadro “Independência ou Morte”, de 1888. O pintor plagiou uma tela do francês Ernest Meissonier, que retratou Napoleão na batalha de Friedland. Segundo testemunhos da época, o brado tupiniquim não foi tão retumbante. O príncipe estava abatido por uma infecção intestinal, vestia roupas simples e se equilibrava sobre uma mula.

“A tentativa de construir um herói idealizado, com sua espada flamejante a libertar um povo, certamente não se destina a quem tenha algum conhecimento da História do Brasil”, critica a historiadora Isabel Lustosa. “O relato romantizado segue o roteiro da construção do mito do herói. Esses exageros não contribuem para entender o que foi a Independência”, acrescenta a autora do livro “D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter”.

Entender as contradições da história não é o objetivo das cavalgaduras federais. Monarquistas, olavistas e generais de pijama preferem simplificar o passado em narrativas ufanistas. A fórmula já foi usada pela ditadura em 1972, quando a Independência fez 150 anos.

Os militares promoveram uma “gigantesca e bem-sucedida operação de apropriação do acontecimento histórico”, escreve a historiadora Heloisa Starling na última edição da revista Serrote. A propaganda exaltava o regime e estimulava o orgulho patriótico. Num lance espetaculoso, os restos mortais do imperador foram trazidos de Portugal e sepultados novamente no Museu do Ipiranga.

O governo Médici também recrutou artistas populares, como Roberto Carlos, para vender a história oficial. “É isso aí, bicho. Vai ter muita música, muita alegria. Porque vai ser a festa de paz e amor e todo brasileiro vai participar cantando a música de maior sucesso no país: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”, cantarolou o Rei, em gravação resgatada pela professora da UFMG.

Bolsonaro conhece o potencial do Sete de Setembro para mobilizar o eleitorado conservador. No ano passado, usou a data para promover atos golpistas. Ao convocá-los, subiu num cavalo e prometeu liderar uma “nova Independência do Brasil”. Em 2022, o capitão tentará usar o bicentenário como arma de campanha. A efeméride será celebrada a 25 dias do primeiro turno. O ufanismo do portal do governo é uma amostra do que vem por aí.

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