quinta-feira, 31 de março de 2022

Cristiano Romero: PT-PSDB: no meio do caminho tinha um Dirceu

Valor Econômico

Em 2004, transição deu a Lula e FHC prêmio nos EUA

No início do segundo ano do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Presidência da República, estourou o primeiro caso ruidoso de corrupção do governo petista. O escândalo envolvia assessor direto do então poderoso ministro José Dirceu.

Ainda que se soubesse da ocorrência de malfeitorias em gestões do partido em prefeituras, o episódio surpreendeu petistas, simpatizantes e oposicionistas. A ética, como ocorre com frequência em eleições no Brasil, foi a principal bandeira das campanhas do PT nos pleitos de 1989 a 2002.

O desgaste foi debitado inteiramente na conta de Zé Dirceu, que, além de exercer o papel tradicional do chefe da Casa Civil (coordenação de todos os ministérios, análise prévia dos principais atos de governo, formatação de projetos de lei, medidas -provisórias etc.), era o responsável pela articulação política. Por essa razão, o ministro era o principal alvo da oposição para enfraquecer Lula.

Até então (fevereiro de 2004), o petista vinha governando com amplo no Congresso Nacional - no ano anterior, a emenda constitucional que instituiu a contribuição previdenciária de funcionários públicos aposentados e estabeleceu que, a partir da regulamentação daquela emenda, os novos servidores teriam que se aposentar pelo INSS, como os trabalhadores do setor privado (a regulamentação só foi feita na gestão Dilma Rousseff).

Com Zé Dirceu sangrando em praça pública, Lula se preocupou pela primeira vez com a governabilidade e, por isso, decidiu ensaiar aproximação com o PSDB de Fernando Henrique Cardoso. Poucos se lembram, mas, por terem protagonizado transição de governo considerada histórica, Lula e FHC foram premiados, em janeiro de 2004, pela Universidade Notre Dame, dos Estados Unidos. “Apesar de representarem partidos políticos opostos, eles atuaram como estadistas para garantir uma eleição limpa, justa e altamente elogiada, por evitar divisões e demagogia”, justificou o Instituto Kellog Institute for International Studies.

Durante a transição, o petista esteve com Fernando Henrique em Brasília, aconselhando-se sobre a nomeação de novos embaixadores, a relação com as Forças Armadas, a condução da política econômica, a maneira de lidar com o Banco Central (BC), o relacionamento com os Estados Unidos etc. Então presidente do BC, Armínio Fraga, estabeleceu contato permanente com Antônio Palocci antes mesmo de este assumir o Ministério da Fazenda em janeiro de 2003; o então ministro da Fazenda, Pedro Malan, indicou Otaviano Canuto para a Secretaria de Assuntos Internacionais, Everardo Maciel propôs Jorge Rachid para substituí-lo no comando da Receita Federal etc.

Tudo ia bem entre Lula e seu sucessor até o dia em que Zé Dirceu declarou que a gestão tucana deixara “herança maldita”. O curioso é que, quando disse isso pela primeira vez, o então ministro procurou esclarecer de que não se tratava de “julgamento moral” do ex-presidente Fernando Henrique, mas, sim, de referência ao aumento da dívida pública, fato que teria obrigado o novo governo a elevar o superávit primário (receitas menos despesas, excluído o gasto com juros da dívida mobiliária) das contas públicas.

O fato é que a expressão “herança maldita” se espalhou no jardim do PT que nem erva daninha, provocando o primeiro grande arranhão nas relações entre Lula e FHC. Ainda assim, Lula, em fevereiro de 2004, enviou emissários ao ex-presidente para evitar que aquela crise envolvendo seu principal ministro lhe custasse a capacidade governar. Um dos emissários foi Luiz Gushiken, petista muito próximo a Lula, na época, ministro da secretaria de Comunicação, falecido em 2013.

Antes de revelar o que sucedeu, é preciso entender como se dava a relação entre Lula e Dirceu. O primeiro fundou o PT com a participação direta de quatro grupos: o novo sindicalismo (que surgiu na ditadura, sem vínculo com o trabalhismo de Getulio Vargas); os intelectuais da USP; a igreja católica de esquerda (Teologia da Libertação); os remanescentes da guerrilha (da qual, Zé Dirceu era um dos próceres).

Tendo pouca ou nenhuma afinidade com o comunismo, Lula sempre teve dificuldade de lidar com o grupo dos petistas ex-guerrilheiros, exceção feita a José Genoíno (ex-combatente da guerrilha do Araguaia, organizada pelo PC do B). A relação com Dirceu não era fácil. No início da década de 1990, Lula o destituiu da comando do diretório do PT em São Paulo.

No fundo, o ex-presidente via nos ex-guerrilheiros um obstáculo para fazer alianças políticas e, assim, tornar sua candidatura à Presidência mais competitiva. Apesar disso, Lula reconhecia em Dirceu as qualidades de liderança e de força de propósito para mudar a forma “principista” (em tese, o oposto de “realpolitik”) do PT, como costumava dizer a interlocutores, de fazer política.

Diante dos fracassos fragorosos nas eleições de 1994 e 1998, ambas perdidas em primeiro turno para FHC, Lula chamou Dirceu e o desafiou a liderar uma guinada no PT, que, para 2002, faria alianças, inclusive com a direita (petistas não gostam de lembrar, mas, naquele pleito, Antônio Carlos Magalhães, do PFL, apoiou o petista na Bahia), para chegar ao poder. Dirceu aceitou a oferta e começou a trabalhar logo após a eleição de 1998. Foi ele o coordenador da campanha vitoriosa que levou Lula ao poder em janeiro de 2003.

Os dois petistas nunca foram próximos. Não se frequentavam, não eram, portanto, amigos. A relação era profissional e respeitosa. Mas, com um ingrediente pouco comum entre correligionários do mesmo partido, envolvidos no mesmo projeto político: a competição

 

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