sábado, 5 de março de 2022

Demétrio Magnoli: Na longa mesa de Putin

Folha de S. Paulo

Ultradireita e esquerda petista subordinam relações internacionais a preferências de natureza ideológica

Bolsonaro sentou-se à longa mesa de Putin para expressar "solidariedade" à Rússia, às vésperas da invasão da Ucrânia. Depois, quando as cidades ucranianas enfrentavam bombardeios, o Itamaraty conferiu substância à palavra do presidente. Simultaneamente, a bancada de senadores do PT reproduziu as cínicas justificativas do Kremlin para a guerra de agressão. Só ingênuos incorrigíveis ficaram surpresos.

A ultradireita brasileira cindiu-se em duas facções. Uma, autenticamente "olavista", posicionou-se contra a Rússia, devido à aliança entre o Kremlin e os odiados chineses. A outra, com a qual se perfilou Bolsonaro, escolheu o lado de Putin, curvando-se às simpatias de Trump e às estreitas ligações do líder russo com partidos da extrema direita europeia.

O PT não se dividiu, mas exercitou os esportes da simulação e da ofuscação. A nota putinista dos senadores foi apagada e revertida após um pito da direção nacional. Os gênios que a escreveram, operando em modo automático, esqueceram de considerar seus previsíveis efeitos sobre a campanha eleitoral de Lula. Mas ela expressava a posição genuína do partido –e, não por acaso, Lula alinhou-se a Bolsonaro na negativa de condenar a invasão de uma nação soberana.

O Brasil oficial cobre-se de vergonha. Há quase duas décadas, na hora da invasão americana do Iraque, a representação brasileira na ONU juntou-se à França e à Alemanha na justa condenação da guerra de escolha –e isso quando a nação agredida vivia sob a ditadura sanguinária de Saddam Hussein. Agora, porém, o governo brasileiro optou pela solidariedade com o agressor.

A China absteve-se na votação das Nações Unidas. O Brasil votou pela resolução condenatória, mas apenas para inglês (digo, americano) ver. Na prática, o Itamaraty criticou as sanções à Rússia e a entrega de armas à Ucrânia, pedindo um cessar-fogo. A ilusória "neutralidade" bolsonarista forma o roteiro dos sonhos de Putin: sem sanções dissuasórias e enfrentando um país carente de armas, a Rússia completaria mais facilmente o assalto militar e imporia um cessar-fogo baseado numa capitulação versalhesa da Ucrânia.

A nota dos senadores e os artigos assinados por quadros do PT indicam que, se Lula já ocupasse a cadeira de Bolsonaro, a postura brasileira seria essencialmente a mesma. Por meio das acrobacias retóricas habituais, o Brasil da esquerda também ofereceria amparo às mentiras emanadas de Moscou. No lugar da Constituição, que define o respeito à soberania e autodeterminação das nações como pilares da política externa nacional, a ultradireita e a esquerda petista subordinam nossas relações internacionais a preferências de natureza ideológica.

João Pereira Coutinho, perspicaz, atribuiu a confraternização entre esquerda e direita à "doença" da "nostalgia" (Folha, 28/2). Contudo, no caso brasileiro, há mais que a utopia de restaurar o passado perdido da URSS ou do Império Russo. A política externa do governo Bolsonaro não é formulada em Brasília, mas na Flórida, em Mar-a-Lago, base de Trump. Já a política externa do PT é delineada lá perto, em Havana, o que também explica o apoio inarredável a Maduro e Ortega.

As narrativas de guerra fabricadas no Kremlin seguem ecoando, bem além da Rússia. A Folha publicou diversos artigos dos papagaios de Putin –e sem nenhum protesto do comitê de Jornalistas pela Censura Virtuosa (Jocevir), que só ergue sua caneta vermelha para vetar as opiniões de críticos antirracistas das políticas identitárias.

Tudo que é de interesse público e não viola as leis brasileiras deve ser impresso. Os textos dos escribas putínicos são de interesse público pois descortinam a extensão da miséria política nacional. Funcionam como provas documentais do encontro, na mesa imperial de um anti-imperialismo de araque, da ultradireita bolsonarista com a esquerda petista.

 

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