segunda-feira, 14 de março de 2022

Denis Lerrer Rosenfield*: O retorno à barbárie

O Estado de S. Paulo.

Na invasão da Ucrânia, a Rússia retomou os seus protocolos militares empregados nas guerras da Chechênia e da Geórgia

As imagens de bombardeios russos a populações civis na Ucrânia são aterradoras. Impossível não sentir desgosto e indignação moral. Se houve algum progresso na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, ele se deveu a um dizer não a soluções militares, privilegiando conversações diplomáticas, mesmo no período mais agudo da guerra fria. Formou-se um consenso em torno do Estado de Bem-estar Social, voltado para o atendimento das necessidade individuais e coletivas. Logo, o continente europeu – e não outras partes do mundo – foi preservado de conflitos propriamente militares, podendo os membros dos vários Estados se dedicarem a seus afazeres privados.

A Europa do século 19, durante décadas, conseguiu privilegiar soluções diplomáticas, graças a diplomatas da mais alta estirpe como Metternich, Castlereagh e Talleyrand, conhecedores da história e da arte da negociação. Após a destruição deste mundo, no final do século 19 e, depois, nas duas guerras da primeira metade do século 20, parecia que um mundo novo viera para ficar, com um não rotundo sendo dito às atrocidades da Segunda Guerra Mundial.

Este novo mundo começou a ser construído baseado na prosperidade social, no bem-estar dos seus cidadãos e na consolidação de instituições democráticas.

A exceção foi a União Soviética, que enveredou para a conquista dos países do Leste Europeu, na afirmação do comunismo, com o Gulag, suas misérias e violências daí decorrentes, garantindo conquistas territoriais pela força do Exército vermelho, após sua luta contra o nazismo. Tais conquistas se traduziram pela formação de uma aliança militar, o Pacto de Varsóvia, que se contrapunha à Otan, voltada, por sua vez, para combater o comunismo. Foi o período que veio a ser conhecido como o da guerra fria, sem que, contudo, tenha havido qualquer confronto direto pondo em questão a estabilidade reinante. A diplomacia foi privilegiada, as forças militares permanecendo, basicamente, dissuasivas.

Com o desmoronamento da União Soviética e a consequente dissolução do Pacto de Varsóvia, parecia que os progressos de então poderiam ir ainda além, com os países bálticos e do Leste Europeu enveredando para uma economia de mercado e a democracia. Tendo desaparecido o espectro do comunismo, seria de esperar um desarmamento correspondente das forças militares ocidentais. Se a Otan foi criada para conter o comunismo, o desaparecimento deste tiraria daquela a sua razão de existir. A Rússia enfraquecida já nada podia fazer.

Ocorre, porém, que os EUA optaram por fortalecer a Otan em função de seus próprios interesses geopolíticos. Começaram a cooptar os países bálticos e do Leste Europeu, convidando-os a ingressarem na aliança atlântica. O resultado foi o cerco militar da Rússia, que viu suas fronteiras sendo ocupadas por mísseis e forças militares adversárias. Os seus próprios medos históricos de ser invadida foram mobilizados. Outra solução poderia ter sido, reiteremos, um desarmamento generalizado, o que levou o grande estrategista americano George Kennan a dizer, nos anos 90 do século passado, que esta reorientação da Otan foi um “erro trágico”. Analogicamente, imagine-se se os EUA iriam permitir mísseis russos em sua fronteira com o México em nome da soberania dos povos, algo que não admitiu com os mísseis instalados pelos soviéticos em Cuba.

A Rússia, porém, em vez de privilegiar a diplomacia, inclusive flexionando suas forças militares para avançar na negociação, voltando-se para garantir que a Ucrânia não ingressaria na Otan – algo, aliás, que nem estava no horizonte próximo, graças a opositores importantes como a Alemanha –, decidiu partir para o confronto militar. E, ao fazêlo, não se orientou somente por sua posição geopolítica anti-eua e anti-europa, mas, principalmente, por suas próprias ideias de uma “Grande Rússia”, não somente a soviética, mas a tzarista. Tudo indica que suas orientações geopolíticas se amparam em pretensões hegemônicas, procurando a médio prazo recuperar o Leste Europeu e os países bálticos, sendo a Ucrânia somente a sua primeira etapa.

Ao invadir este país, num momento inicial, a Rússia, apesar de romper com o consenso europeu estabelecido, baseado no reconhecimento de fronteiras e na ideia de soberania nacional, parecia seguir padrões de uma guerra “civilizada” – se é que se pode empregar essa expressão –, preservando as populações civis e privilegiando alvos propriamente militares.

Na medida em que seu avanço foi contido, seja pela resistência ucraniana, seja pela primavera, que, com o degelo, faz com que os tanques atolem na lama, seja por seus erros militares e logísticos, os seus “cuidados” iniciais foram desaparecendo. Retomou os seus protocolos militares empregados nas guerras da Chechênia e da Geórgia, passando a bombardear pesadamente as populações civis, não resguardando nem hospitais e maternidades. As imagens de morte e destruição dos habitantes das cidades são chocantes. É o retorno à barbárie.

*Professor de filosofia na UFGRS

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