domingo, 13 de março de 2022

Dorrit Harazim: Meu amigo, o fotógrafo Orlando Brito (1950-2022)

O Globo

Muito antes de o bicho homem tomar rumo semelhante, os animais já se aglomeravam em grupos mais amplos do que as famílias biológicas a que pertenciam. Fizeram bem, pois assim alongaram seu tempo de sobrevivência no planeta. A natureza das espécies foi generosa também com o ser humano, pois foi desse mesmo instinto de sobrevivência que deve ter emergido algo tão monumental e fugidio a definições como a amizade. Melhor nem pretender descrevê-la e recorrer logo a um desses filósofos da Antiguidade que sabiam pensar e escrever sobre tudo. Certo estava Sêneca quando escreveu que a amizade é um talento. E, como todo talento, um dom. Orlando Brito, o mais completo repórter fotográfico brasileiro, tinha esse dom. Foi meu amigo. O verbo no pretérito perfeito dói.

A dimensão de Brito como testemunha e biógrafo visual do poder no Brasil não tem paralelo — nem em qualidade, nem em quantidade ou em longevidade. A cada um dos 15 presidentes da República (e respectivas Cortes) observados quase cotidianamente desde 1964, Brito dedicou uma tenacidade única. Tinha tamanho conhecimento das figuras brasilienses que sabia flagrar até reprimidas mudanças de humor. Nada lhe escapava, tampouco fugia das mais modorrentas agendas oficiais. “É ali que se revelam as pequenas grandes ambições”, dizia. Quantas vezes telefonava aflito quando o chamado grande jornalismo não percebera nem presenciara algo crucial captado por suas lentes? Foi ele o primeiríssimo a apontar a singularidade obsequiosa das orações matinais, coletivas, do presidente. Foi ele o primeiríssimo a argumentar que caberia aos chefes de redação ou jornalistas consagrados irem todas as manhãs ao infame cercadinho montado no Palácio da Alvorada, em vez de delegar a inglória tarefa a repórteres cobaias.

Orlando Brito chegara aos 72 anos reverenciado e multipremiado. Havia chefiado as mais nobres editorias de fotografia do jornalismo pátrio. Ainda assim, continuava no batente desde as 7 da manhã, pois não tinha salário fixo. Trabalhava como freelancer, e os finais de mês em sua agência eram um sufoco. Tinha um mundo de amigos, mas não tinha plano de saúde. Foi acolhido de emergência no Hospital Regional da Asa Norte, depois transferido para outro CTI, em Taguatinga. Em ambos, conheceu o horror da penúria do SUS e a fenomenal dedicação da medicina pública. Conheceu na morte o Brasil que fotografou com amor em vida. Sim, porque Brito também retratou o Brasil miúdo e o mundão grande, muitas vezes comigo a tiracolo. Sorte do país ou da instituição que conseguir honrar o patrimônio histórico deixado por ele, dando-lhe o trato, o abrigo, a organização e o acesso público merecidos.

Voltando ao tema inicial da amizade, essa coisa que é tanto elo quanto sentimento, abstração e matéria. Que pode nascer no instante em que alguém diz para o outro “nossa, você também? pensei que só eu...” e durar por uma vida inteira. Amizade já foi considerada como superior à paixão por ser menos conturbada, concentrar menos exigências ou ansiedades capazes de perturbar a tranquilidade do fluir das ideias. A dádiva de ter amigos é outra — é a possibilidade de falar e de ouvir sem defesas, é nossa válvula de segurança. Amigos dizem o que devemos ouvir, na hora certa. Amores, na maioria das vezes, dizem o que queremos ouvir.

Quem já não ouviu ou fez uma mesma pergunta ao longo da vida: “Mas fulano(a) de tal não tem amigos, caramba?”. A dúvida é polivalente, pode se aplicar tanto ao ato insensato e monocrático de um Vladimir Putin quanto à escolha de uma gravata (ou fala) particularmente ridícula do procurador-geral da República, Augusto Aras. Na pergunta está embutida a certeza de que, se amigos tivessem, errariam menos.

Pois, ao longo da vida, Orlando Brito entendeu o poder e a complexidade da amizade. Regava cada uma com o respeito, a distância ou a aproximação que sua sensibilidade afetiva ditava. Não brigava, quando necessário deixava amizades quebradiças morrerem de morte natural. O universo tóxico e competitivo de Brasília, onde ele desembarcou meninote vindo de Minas Gerais, jamais conseguiu contaminar o profissional generoso — ele sempre se desdobrou em ensinar a saída do labirinto planaltino a quem o procurasse. Numa profissão exibida como a nossa, nunca ostentou seu saber.

Saudade, amigo Brito.

 

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