O Globo
Muito antes de o bicho homem tomar rumo semelhante, os animais já se aglomeravam em grupos mais amplos do que as famílias biológicas a que pertenciam. Fizeram bem, pois assim alongaram seu tempo de sobrevivência no planeta. A natureza das espécies foi generosa também com o ser humano, pois foi desse mesmo instinto de sobrevivência que deve ter emergido algo tão monumental e fugidio a definições como a amizade. Melhor nem pretender descrevê-la e recorrer logo a um desses filósofos da Antiguidade que sabiam pensar e escrever sobre tudo. Certo estava Sêneca quando escreveu que a amizade é um talento. E, como todo talento, um dom. Orlando Brito, o mais completo repórter fotográfico brasileiro, tinha esse dom. Foi meu amigo. O verbo no pretérito perfeito dói.
A dimensão de Brito como testemunha e biógrafo visual do poder no Brasil não tem paralelo — nem
em qualidade, nem em quantidade ou em longevidade. A cada um dos 15 presidentes
da República (e respectivas Cortes) observados quase cotidianamente desde 1964,
Brito dedicou uma tenacidade única. Tinha tamanho conhecimento das figuras
brasilienses que sabia flagrar até reprimidas mudanças de humor. Nada lhe
escapava, tampouco fugia das mais modorrentas agendas oficiais. “É ali que se
revelam as pequenas grandes ambições”, dizia. Quantas vezes telefonava aflito
quando o chamado grande jornalismo não percebera nem presenciara algo crucial
captado por suas lentes? Foi ele o primeiríssimo a apontar a singularidade
obsequiosa das orações matinais, coletivas, do presidente. Foi ele o
primeiríssimo a argumentar que caberia aos chefes de redação ou jornalistas
consagrados irem todas as manhãs ao infame cercadinho montado no Palácio da
Alvorada, em vez de delegar a inglória tarefa a repórteres cobaias.
Orlando Brito chegara aos 72 anos
reverenciado e multipremiado. Havia chefiado as mais nobres editorias de
fotografia do jornalismo pátrio. Ainda assim, continuava no batente desde as 7
da manhã, pois não tinha salário fixo. Trabalhava como freelancer, e os finais
de mês em sua agência eram um sufoco. Tinha um mundo de amigos, mas não tinha
plano de saúde. Foi acolhido de emergência no Hospital Regional da Asa Norte,
depois transferido para outro CTI, em Taguatinga. Em ambos, conheceu o horror
da penúria do SUS e a fenomenal dedicação da medicina pública. Conheceu na
morte o Brasil que fotografou com amor em vida. Sim, porque Brito também
retratou o Brasil miúdo e o mundão grande, muitas vezes comigo a tiracolo.
Sorte do país ou da instituição que conseguir honrar o patrimônio histórico
deixado por ele, dando-lhe o trato, o abrigo, a organização e o acesso público
merecidos.
Voltando ao tema inicial da amizade, essa
coisa que é tanto elo quanto sentimento, abstração e matéria. Que pode nascer
no instante em que alguém diz para o outro “nossa, você também? pensei que só
eu...” e durar por uma vida inteira. Amizade já foi considerada como superior à
paixão por ser menos conturbada, concentrar menos exigências ou ansiedades
capazes de perturbar a tranquilidade do fluir das ideias. A dádiva de ter
amigos é outra — é a possibilidade de falar e de ouvir sem defesas, é nossa
válvula de segurança. Amigos dizem o que devemos ouvir, na hora certa. Amores,
na maioria das vezes, dizem o que queremos ouvir.
Quem já não ouviu ou fez uma mesma pergunta
ao longo da vida: “Mas fulano(a) de tal não tem amigos, caramba?”. A dúvida é
polivalente, pode se aplicar tanto ao ato insensato e monocrático de um
Vladimir Putin quanto à escolha de uma gravata (ou fala) particularmente ridícula
do procurador-geral da República, Augusto Aras. Na pergunta está embutida a
certeza de que, se amigos tivessem, errariam menos.
Pois, ao longo da vida, Orlando Brito
entendeu o poder e a complexidade da amizade. Regava cada uma com o respeito, a
distância ou a aproximação que sua sensibilidade afetiva ditava. Não brigava,
quando necessário deixava amizades quebradiças morrerem de morte natural. O
universo tóxico e competitivo de Brasília, onde ele desembarcou meninote vindo
de Minas Gerais, jamais conseguiu contaminar o profissional generoso — ele
sempre se desdobrou em ensinar a saída do labirinto planaltino a quem o
procurasse. Numa profissão exibida como a nossa, nunca ostentou seu saber.
Saudade, amigo Brito.
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