domingo, 20 de março de 2022

Dorrit Harazim: O amanhã

O Globo

Até 25 dias atrás, excetuando os diretamente interessados, brasileiros podiam confundir Carcóvia, na Ucrânia, com Cracóvia, na Polônia — ambas majestosas segundas maiores cidades de seus países. Não mais. Também foi preciso desempoeirar às pressas nosso mapa-múndi escolar e aprender, com esta primeira guerra “live” da humanidade, a chamar Carcóvia de Kharkiv, versão anglicizada do nome original da cidade. Tudo em vão. Quando a guerra acabar não haverá mais a Kharkiv/Carcóvia de antes. Restarão apenas pirâmides de escombros e uma abissal dor coletiva, misturada a um oceano de luto individual. Serão inúmeros os horrores e as memórias a reparar por toda a nação invadida. Da eviscerada Mariupol, no sul do país, à europeia Lviv, no oeste, ficarão as marcas da desumanidade. A Ucrânia inteira, ou o que dela restar, precisará juntar seus cacos como sociedade.

Mais uma vez, das ruínas desta quase Terceira Guerra, talvez não se aprenda a lição. Para restaurar a confiança do ser humano no mundo por ele fabricado, seria preciso não temer mudanças radicais, ter líderes com uma visão de futuro para além de seus cercadinhos de poder político. Difícil de imaginar, apesar da urgência de repensar a matriz capitalista em que o planeta está se destruindo a galope. Na devastação humana causada pela Covid-19, surgiu a possibilidade para todos entenderem que não existe país verdadeiramente civilizado sem saúde pública decente. O Brasil indecente de Jair Bolsonaro passou batido, com mais de 650 mil mortes de um vírus ainda longe de estar domesticado.

Por ora, as aflições gerais estão mais concentradas nesta guerra insana de que todos os envolvidos sairão perdedores, até os que vierem a comemorar alguma vitória. No fundo, somos todos perdedores, mesmo quando meros espectadores com continentes inteiros a nos separar dos combates. Perde-se em humanidade ao presenciar tanto horror, mesmo quando solidários e doloridos com a dor alheia.

A exceção, claro, são os gigantes da indústria armamentista mundial, que, a cada nova guerra, exibem capacidade de destruição mais sofisticada e precisa. Sem falar na temerária possibilidade de líderes de países sem guerras, mas com vocações aguerridas, se apropriarem da tática defensiva adotada pela Ucrânia para defender sua terra e povo do ataque invasor: armar a população civil e fazer dela uma milícia cívica de luta pela vida. A alma miliciana do Brasil bolsonarista teria propósito menos cívico — não devem faltar voluntários para defender o chefe de uma invasão democrática nas urnas.

Para momentos assim, decisivos e angustiantes, é bom lembrar vozes que conseguem nos ensinar a esperançar. A escritora americana Muriel Rukeyser é uma delas. No verão de 1949, aos 36 anos de idade, ela já havia militado junto aos anarquistas na Guerra Civil Espanhola, tinha atravessado as duas Guerras Mundiais, compartilhado um navio de refugiados com cinco vezes mais passageiros que o normal e sido presa por participar do emergente movimento em favor dos Direitos Civis dos negros, nos Estados Unidos. Então sentou-se e escreveu “The life of poetry”, uma coletânea de ensaios que falam de liberdade e resistência, tão indissolúveis da poesia como da vida.

“Em tempos de crise é preciso convocar nossa força interior”, ensina na introdução. Mas, para isso, precisará conseguir recorrer a todos os recursos de que dispõe o ser humano, lembrar cada momento em que soube usar seu poder. Só que essa dádiva exige um longo preparo no conhecimento de quem somos e do que queremos. Somente quando confrontados com horizontes e conflitos jamais vistos, testamos na totalidade nossa força. Para Rukeyser, só passamos para a etapa seguinte, a ação — seja escrever um poema ou engajar-se como cidadão — quando olhamos sem medo a vontade humana. E, se persistir a sensação de que ainda nos falta algo, ou de que perdemos ímpeto a caminho da ação, é porque não usamos tudo o que temos. Precisamos recomeçar a procura. Essa procura pode levar uma vida inteira, e há quem jamais se encontre. “À medida que vivemos nossas verdades, atravessaremos quaisquer barreiras, invocando as raízes da paz. Mas uma paz que não deve ser confundida com falta de guerra... Somos nós que vamos definir a paz, e viver para lutar pela sua chegada.”

A cada um de saber o que fazer do seu amanhã.

 

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