O Globo
Até 25 dias atrás, excetuando os diretamente interessados, brasileiros podiam confundir Carcóvia, na Ucrânia, com Cracóvia, na Polônia — ambas majestosas segundas maiores cidades de seus países. Não mais. Também foi preciso desempoeirar às pressas nosso mapa-múndi escolar e aprender, com esta primeira guerra “live” da humanidade, a chamar Carcóvia de Kharkiv, versão anglicizada do nome original da cidade. Tudo em vão. Quando a guerra acabar não haverá mais a Kharkiv/Carcóvia de antes. Restarão apenas pirâmides de escombros e uma abissal dor coletiva, misturada a um oceano de luto individual. Serão inúmeros os horrores e as memórias a reparar por toda a nação invadida. Da eviscerada Mariupol, no sul do país, à europeia Lviv, no oeste, ficarão as marcas da desumanidade. A Ucrânia inteira, ou o que dela restar, precisará juntar seus cacos como sociedade.
Mais uma vez, das ruínas desta quase
Terceira Guerra, talvez não se aprenda a lição. Para restaurar a confiança do
ser humano no mundo por ele fabricado, seria preciso não temer mudanças
radicais, ter líderes com uma visão de futuro para além de seus cercadinhos de
poder político. Difícil de imaginar, apesar da urgência de repensar a matriz
capitalista em que o planeta está se destruindo a galope. Na devastação humana
causada pela Covid-19, surgiu a possibilidade para todos entenderem que não
existe país verdadeiramente civilizado sem saúde pública decente. O Brasil
indecente de Jair Bolsonaro passou batido, com mais de 650 mil mortes de um vírus
ainda longe de estar domesticado.
Por ora, as aflições gerais estão mais
concentradas nesta guerra insana de que todos os envolvidos sairão perdedores,
até os que vierem a comemorar alguma vitória. No fundo, somos todos perdedores,
mesmo quando meros espectadores com continentes inteiros a nos separar dos
combates. Perde-se em humanidade ao presenciar tanto horror, mesmo quando
solidários e doloridos com a dor alheia.
A exceção, claro, são os gigantes da
indústria armamentista mundial, que, a cada nova guerra, exibem capacidade de
destruição mais sofisticada e precisa. Sem falar na temerária possibilidade de
líderes de países sem guerras, mas com vocações aguerridas, se apropriarem da
tática defensiva adotada pela Ucrânia para defender sua terra e povo do ataque
invasor: armar a população civil e fazer dela uma milícia cívica de luta pela
vida. A alma miliciana do Brasil bolsonarista teria propósito menos cívico —
não devem faltar voluntários para defender o chefe de uma invasão democrática
nas urnas.
Para momentos assim, decisivos e angustiantes,
é bom lembrar vozes que conseguem nos ensinar a esperançar. A escritora
americana Muriel Rukeyser é uma delas. No verão de 1949, aos 36 anos de idade,
ela já havia militado junto aos anarquistas na Guerra Civil Espanhola, tinha
atravessado as duas Guerras Mundiais, compartilhado um navio de refugiados com
cinco vezes mais passageiros que o normal e sido presa por participar do
emergente movimento em favor dos Direitos Civis dos negros, nos Estados Unidos.
Então sentou-se e escreveu “The life of poetry”, uma coletânea de ensaios que
falam de liberdade e resistência, tão indissolúveis da poesia como da vida.
“Em tempos de crise é preciso convocar
nossa força interior”, ensina na introdução. Mas, para isso, precisará
conseguir recorrer a todos os recursos de que dispõe o ser humano, lembrar cada
momento em que soube usar seu poder. Só que essa dádiva exige um longo preparo
no conhecimento de quem somos e do que queremos. Somente quando confrontados
com horizontes e conflitos jamais vistos, testamos na totalidade nossa força.
Para Rukeyser, só passamos para a etapa seguinte, a ação — seja escrever um
poema ou engajar-se como cidadão — quando olhamos sem medo a vontade humana. E,
se persistir a sensação de que ainda nos falta algo, ou de que perdemos ímpeto
a caminho da ação, é porque não usamos tudo o que temos. Precisamos recomeçar a
procura. Essa procura pode levar uma vida inteira, e há quem jamais se
encontre. “À medida que vivemos nossas verdades, atravessaremos quaisquer
barreiras, invocando as raízes da paz. Mas uma paz que não deve ser confundida
com falta de guerra... Somos nós que vamos definir a paz, e viver para lutar
pela sua chegada.”
A cada um de saber o que fazer do seu
amanhã.
Nenhum comentário:
Postar um comentário