sábado, 19 de março de 2022

Eduardo Affonso: Mundo parece ter voltado ao século XX

O Globo

Expectativa do século XXI: cidades suspensas, carros voadores, todo mundo de roupa metalizada. Viagens no tempo, memórias implantadas por chip, teletransporte. Odisseias no espaço, robôs fazendo o serviço doméstico, androides adquirindo consciência da morte. A realidade: isto que a gente vê quando olha pela janela, lê o jornal, liga a TV ou acessa a internet.

Estamos há duas décadas no século XXI e, pelo jeito, pegamos, sem querer, um retorno.

Já tivemos não só uma pandemia como a de 1918-1919, mas também uma revolta da vacina, como em 1904. Derrotada por Itamar e FH em 1994, a inflação ganhou direito a revanche sob Bolsonaro, em 2022. Golpe de Estado, um comportamento tão século passado? Sim, seu rosnado foi ouvido em 2021. Considerada extinta desde a Constituição de 1988, a censura pôde ser vista, lépida e fagueira, nesta semana, em Brasília.

A quem se perguntava o que seria da civilização cristã depois da revolução sexual dos anos 1960, olhaí a pudicícia comendo solta — mamilos femininos proibidos nas redes sociais (e nas praias!), beijo gay causando comoção na Bienal do Livro. Deixamos de avançar e, nesta toada, logo retrocederemos a tempos pré-Masters & Johnson, pré-Wilhelm Reich, pré-Luz Del Fuego.

O comunismo morreu em 1989 (ainda pode ser encontrado como zumbi em Cuba, como um vampiro na Coreia do Norte e como um frankenstein na China), mas o medo dele renasceu das cinzas. Não será surpresa se houver uma nova onda de avistamento de discos voadores, a volta dos filmes de Godzilla e aparições de Nossa Senhora — sintomas clássicos de reação ao bicho-papão gestado por Marx e Engels, cevado por Mao e Stálin e powered by Fidel Castro & Cia.

O “É proibido proibir” de maio de 1968 deu lugar à patrulha do pensamento, também conhecida como “politicamente correto” — uma espécie de macarthismo mental que caça racismo e machismo na linguagem cotidiana e procura fascistas embaixo da cama (o macarthismo reverso do século XXI não deve muito ao original dos anos 1950).

Estaremos involuindo, então? Não, estamos é precisando deixar de lado aquele conceito positivista de que a humanidade avança numa marcha contínua, em progresso constante. Pegando carona nos ensinamentos de Carlinhos Lyra, o mundo evolui ora como o samba, de um lado pro outro; ora como o jazz, pra frente e pra trás.

Voltamos até a ter déspotas marcando território e bombardeando alvos civis na Europa — coisa que não se via desde a Guerra da Iugoslávia e que se pensava não tornar a ver jamais. Como em 1962, de novo tememos uma guerra nuclear.

O mais perto que chegamos do século XXI, por enquanto, foi a Alexa e a criptoarte, vendida em NFT — algo que nem Huxley, Asimov ou Júlio Verne conseguiriam prever (eram autores dotados de muita imaginação, mas também de bom senso).

Somos, no século XXI, menos modernos que em meados do século passado. O que dá razão a Zé Rodrix: “Não tenha medo/Quando sua filha é tão maluca quanto a sua mãe./Quem sabe seus netinhos não vão ser/Tão caretas quanto você.”

 

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