sábado, 19 de março de 2022

Pablo Ortellado: O governo da Ucrânia é nazista?

O Globo

Um dos elementos mais insidiosos da propaganda de guerra russa é a acusação de que o governo ucraniano está tomado por nazistas. A resposta à pergunta do título acima é simples: não, o governo da Ucrânia não é nazista. Apesar disso, a existência de um regimento da Guarda Nacional, o Batalhão Azov, composto de neonazistas e supremacistas brancos, deveria ser motivo de preocupação, tanto porque mostra condescendência do Estado ucraniano com ideais execráveis como por oferecer apoio à propaganda de Vladimir Putin.

O Batalhão Azov se formou nos desdobramentos das manifestações populares de 2013 e 2014 chamadas Euromaidan, contra as ações anti-União Europeia e pró-Rússia do governo, que terminaram derrubando o presidente ucraniano Viktor Yanukovich.

Quando os protestos contra o governo começaram a sair do controle, em janeiro de 2014, Yanukovich aprovou uma dura lei antiprotestos, que resultou numa repressão violenta e deixou quase cem mortos. Quando o Estado reagiu com violência, grupos neonazistas tomaram a frente dos manifestantes, tornando-se as lideranças de fato nas batalhas de rua.

Sob forte pressão, Yanukovich fugiu para a Rússia, temendo o impeachment e acusações criminais. Após a fuga do presidente, e alegando um golpe de Estado, separatistas de etnia russa na região da Crimeia e nas regiões de Donetsk e Luhansk declararam independência. A Rússia terminou anexando a Crimeia em março, e uma guerra foi deflagrada nas duas regiões do leste do país.

Foi nesse contexto que grupos neonazistas e supremacistas brancos convertidos em paramilitares se reuniram no Batalhão Azov para combater o separatismo pró-russo. O Estado ucraniano, reconhecendo a debilidade das suas Forças Armadas, terminou incorporando grupos paramilitares voluntários, como o Azov, na Guarda Nacional. Uma reportagem do Washington Post de 2017 sugeriu que esse arranjo foi estabelecido devido à grande determinação das tropas voluntárias e porque lutavam sem gerar custos previdenciários para o Estado.

Nos anos que separam o começo da guerra de baixa intensidade contra os separatistas pró-Rússia em 2014 da invasão russa de 2022, o Azov se converteu num hub internacional de movimentos supremacistas brancos. Em diversos países, militantes racistas de extrema direita foram chamados a lutar na Ucrânia contra os separatistas para ganhar treinamento prático militar e depois difundir essa experiência de combate em seus grupos locais. Essa estratégia é semelhante à do Estado Islâmico, que recrutava voluntários em diversos países para ganhar experiência de combate na Síria. Em 2016, uma célula do Azov no Rio Grande do Sul foi desbaratada pela Polícia Civil tentando levar neonazistas gaúchos para a Ucrânia.

Supremacistas brancos também foram recrutados para lutar com o Exército russo, já que Putin é visto em alguns círculos de extrema direita como um defensor do tradicionalismo branco. Um estudo publicado em 2019 estimou que 17 mil voluntários de mais de 50 países foram recrutados para lutar na Ucrânia, nos dois lados do conflito, a maioria com os russos.

Desde o início do conflito na região de Donetsk e Luhansk, a Rússia tem usado o Azov em sua propaganda, distorcendo seu tamanho e seu papel nas Forças Armadas ucranianas. Estudiosos estimam o tamanho do batalhão entre mil e 1.500 homens, divididos em diversas unidades, mas a propaganda russa o apresenta como se fosse a maior parte do Exército do país (as Forças Armadas ucranianas tinham antes da guerra um contingente estimado em 210 mil soldados). É dessa distorção que deriva o objetivo alegado por Putin de “desnazificar” a Ucrânia.

Um número mostra a influência real do Azov no país: seu braço político, o Partido do Corpo Nacional, teve 2% dos votos e não conseguiu eleger um único parlamentar nas últimas eleições, em 2019. O próprio fato de o atual presidente, Volodymyr Zelensky, ser judeu — com um bisavô e três tios-avôs assassinados pelos nazistas — e de ter reparado omissões históricas na memória do Holocausto em seu país não parece evidência forte o suficiente para barrar a difusão da propaganda russa.

O governo da Ucrânia faz muito mal em manter o Azov entre suas forças oficiais. O batalhão tem sido útil no esforço de guerra para conter o separatismo, mas ao custo de gerar endosso político e apoio militar e financeiro a agrupamentos supremacistas brancos. Nada disso, porém, dá sustentação à propaganda barata do imperialismo russo de que as Forças Armadas ou o governo de Zelensky sejam nazistas. 

 

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