terça-feira, 29 de março de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Mais um

O Globo

O PASTOR Milton Ribeiro demorou a entender que não tinha mais condição de continuar como ministro da Educação depois das denúncias de corrupção na pasta envolvendo pastores alheios aos quadros do MEC.

SUA SAÍDA, anunciada ontem à tarde numa carta de demissão, acontece menos por desaprovação do presidente — Jair Bolsonaro defendeu Ribeiro nas redes sociais — do que pelo potencial de estrago que poderia causar na campanha à reeleição.

O MINISTÉRIO da Educação, depois de mais uma gestão que misturou ideologia, inépcia e involução na qualidade do ensino, vai para o quinto titular em três anos e três meses de governo. O retrospecto de Bolsonaro sugere que não necessariamente a mudança será para melhor.

Expressão política de artistas impõe novo desafio ao TSE

O Globo

Não será trivial o desafio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições deste ano. Essa é a principal conclusão a extrair da decisão equivocada do ministro Raul Araújo, que classificou como propaganda eleitoral antecipada as manifestações de cantoras num festival de música realizado em São Paulo.

No sábado, a cantora Pabllo Vittar se apresentou ao lado de uma bandeira com a imagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato à Presidência pelo PT. A cantora britânica Marina Diamandis xingou o presidente Jair Bolsonaro. Alegando tratar-se de propaganda eleitoral antes do prazo legal, que começa em 16 de agosto, o PL, partido de Bolsonaro, entrou com um pedido de proibição de manifestações políticas no festival. Araújo aceitou o argumento e determinou uma multa de R$ 50 mil por descumprimento da decisão.

Trata-se de um equívoco por dois motivos. O primeiro é jurídico: manifestar simpatias políticas é diferente de fazer propaganda eleitoral. A jurisprudência consolidada no TSE considera ilegal apenas o pedido explícito de voto realizado antes da campanha eleitoral. Não foi o que fizeram as duas artistas que se apresentaram no festival.

Em todas as democracias, são corriqueiras as manifestações políticas da classe artística. O Brasil não é exceção. Por aqui, apresentações culturais em anos eleitorais sempre foram marcadas por declarações de apoio ou antipatia por candidatos. Não há razão para 2022 ser diferente. Pelo contrário. Dado o nível de polarização, raros serão os shows e peças de teatro sem algum tipo de mensagem, não necessariamente em favor de um só candidato.

Repousa aí o segundo equívoco da decisão, de caráter político. Ela tem o efeito contrário ao desejado. Em vez de coibir manifestações de apoio ou repúdio a candidatos, acaba por incentivá-las, na medida em que é — corretamente — interpretada como tentativa de censurar uma opinião. A decisão do fim de semana é combustível para que outras manifestações do tipo surjam.

Talvez preocupado em passar uma imagem de equilíbrio, Araújo atropelou o direito à livre expressão. Viu problema entre os artistas, mas nada de errado num caso que analisou na semana passada sobre outdoors favoráveis a Bolsonaro pagos por produtores rurais.

A decisão dele acabou sendo inócua. Por erro, o pedido do PL foi feito contra uma empresa diferente da que organizou o evento, e o TSE não conseguiu entregar a notificação. Como o festival terminou no domingo, o processo pode ser extinto ou levado a julgamento no plenário da Corte. O presidente do TSE, ministro Edson Fachin, afirmou que pretende dar prosseguimento célere ao assunto. É importante para que o plenário tenha mais uma oportunidade de esclarecer o que diz a Lei Eleitoral.

Os repetidos ataques de Bolsonaro à democracia desde que assumiu a Presidência exigiram do TSE um protagonismo nunca visto antes. Declarações de ministros da Corte em defesa da urna eletrônica, campanhas publicitárias e acordos com plataformas digitais para combater desinformação fazem parte da defesa da democracia. Agora a corrida eleitoral entrou numa nova fase, que dependerá de ainda mais agilidade e equilíbrio do Tribunal, para que se evitem novos erros.

Política armamentista de Bolsonaro aumentou arsenais de criminosos

O Globo

O incentivo às armas promovido pelo governo Jair Bolsonaro tem aumentado de forma perigosa os arsenais privados. Favorecido pelos decretos apoiados pela “bancada da bala” ou mesmo por sentenças judiciais, tem sido assustador o aumento no acesso a armamentos concedido a amadores, reunidos no grupo conhecido pela sigla CAC (Caçador, Atirador e Colecionador). Antes limitados, os CACs passaram a ter acesso a armas e munições de grosso calibre em quantidades extravagantes.

Atiradores esportivos, que antes podiam adquirir até 16 armas, hoje podem comprar 60, como constatou reportagem do GLOBO. Colecionadores estão livres para ter até cinco armas de vários tipos e modelos. Em três anos, as licenças concedidas pelo Exército a CACs saltaram 325% (de 255.402 em 2018 para 1.085.888 no ano passado).

O resultado dos controles relaxados é previsível. Não é coincidência que tenha aumentado a quantidade de bandidos apanhados com o certificado de CAC. Um exemplo entre pelo menos 25 levantados pelo GLOBO é o caso do “colecionador” Vitor Furtado Rebollal Lopes, conhecido por Bala 40, com quem a polícia encontrou 26 fuzis AR-15 e 556, três carabinas, 21 pistolas, dois revólveres, uma espingarda calibre 12, um rifle, um mosquetão, além de caixas de munição para fuzis, uma armaria ao todo estimada em R$ 1,8 milhão. De acordo com a polícia, que apreendeu o arsenal, Bala 40 entregaria os fuzis a uma das maiores facções criminosas do Rio. Por ser CAC, ele comprava as armas legalmente e as guardava numa casa ao lado de uma creche.

O certificado de CAC também passou a servir na Justiça como uma espécie de “atestado de honestidade” para quem guarda armas e munições para criminosos. Foi o argumento usado pela defesa do sargento da PM Alex Bonfim de Lima Silva, do 39º Batalhão da PM fluminense, preso em novembro de 2019 como integrante da milícia que extorque dinheiro de moradores e do comércio de São João de Meriti. Uma operação policial encontrou na casa dele grande quantidade de armas de grosso calibre com numeração raspada. Três anos antes, revelou O GLOBO, Lima obtivera no Exército um Certificado de Registro (CR) e se converteu em “colecionador”. O documento o ajudou no julgamento pelos desembargadores da 6ª Câmara Criminal, em fevereiro de 2020, quando foi solto.

É tamanha a licenciosidade com que o governo trata a questão das armas, que os casos do PM armeiro ou do “colecionador” Bala 40 estão longe de ser isolados. Há fartos relatos do uso de CACs para abastecer de armas e munições facções do tráfico, milícias e grupos de extermínio em vários estados. Na antológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Bolsonaro bradou que “povo armado jamais será escravizado”. Na ocasião, a frase deixou no ar dúvidas sobre as intenções de Bolsonaro com sua política armamentista. Com o passar do tempo, ela tem deixado de ser enigmática.

Rechaçar a censura

Folha de S. Paulo

Decisão afronta direitos de que se valem apoiadores de todas as candidaturas

Com uma argumentação pobre do ponto de vista jurídico e frágil no plano da lógica, o ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral, tentou impor censura prévia ao Lollapalooza, festival musical realizado em São Paulo.

Atendeu com isso a demanda dos advogados do presidente Jair Bolsonaro (PL), que procuraram o TSE no sábado (26) devido a alegada propaganda eleitoral antecipada e pediram que manifestações políticas fossem proibidas nos shows.

Na véspera, as cantoras Marina e Pabllo Vittar tinham aproveitado o palco do festival para atacar o ocupante do Palácio do Planalto e enaltecer o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Faziam uso da liberdade de expressão e manifestação artística, um direito protegido pela Constituição —e do qual se valem também os apoiadores de Bolsonaro, do área cultural ou não.

O TSE não costuma ter dificuldades para compreender o óbvio. Seu presidente, o ministro Edson Fachin, lembrou que a posição do tribunal é de "rechaço pleno e firme de qualquer forma de censura".

Daí por que causou espécie a decisão de Araújo. Mesmo que o direito não seja uma ciência exata, alguns parâmetros devem ser seguidos para que as sentenças não se confundam com meras canetadas nem expressem o puro arbítrio dos magistrados.

Araújo se descolou de todas as balizas que deveriam guiar sua argumentação. Contrariou a Constituição e os princípios nela elencados, ignorou normas que tratam diretamente do assunto e deu de ombros para a jurisprudência do colegiado a que pertence.

Por fim, afastou-se de seu próprio histórico de interpretação liberal da lei: em fevereiro, ele havia negado pedido do PT para retirar outdoors de apoio a Bolsonaro, embora a legislação expressamente vede a utilização dessas placas.

Para piorar, nem bem a canetada de Araújo tinha secado e Bolsonaro participava de ato partidário, no domingo (27), que havia despertado preocupações de sua própria equipe jurídica, diante dos riscos de vir a ser considerado campanha eleitoral antecipada.

A lei não permite que se peça voto explicitamente antes de 16 de agosto. O presidente não chegou a violar essa norma, mas discursou como candidato e atacou Lula, seu principal adversário no pleito.

Se a concomitância dos eventos já colocava em xeque a ação bolsonarista e a decisão de Araújo, artistas e público do festival trataram de debochar de seu conteúdo e demonstrar como, na prática, a ordem não poderia ser cumprida.

Mas daí não decorre que o assunto deva ser dado por superado. Decisões que pretendam retomar a censura precisam ser expostas como um retrocesso obscurantista e rejeitadas pelas cortes. Fachin, felizmente, indicou ter consciência de sua responsabilidade.

Uruguai dividido

Folha de S. Paulo

Aprovação apertada de pacote mostra dificuldades do governo de centro-direita

Oficialmente, os uruguaios foram às urnas no domingo (27) para um referendo sobre um amplo pacote legislativo aprovado há quase dois anos. No jogo político, entretanto, a votação popular se converteu num teste de apoio à gestão do presidente Luis Lacalle Pou.

A vitória do novo diploma, embora pela estreita margem de um ponto percentual, representa um triunfo do mandatário uruguaio e dá fôlego à coalizão que o sustenta.

No centro da disputa estavam 135 artigos da chamada Lei de Urgente Consideração (LUC), uma colcha de propostas aprovadas no começo do governo de Lacalle Pou. A norma, considerada a base do programa da centro-direita uruguaia, altera dezenas de leis preexistentes e constituiu o carro-chefe da campanha presidencial vitoriosa.

Abrange desde as condições de reajuste do preço dos combustíveis até os limites do direito de greve, passando pelo papel do Estado na economia, na educação e na segurança. Entre outros pontos, estabelece o fim do monopólio estatal de serviços como internet, telefonia, eletricidade e hidrocarbonetos.

Os aspectos mais controversos do pacote instituem uma equivocada política linha-dura na segurança pública uruguaia.

Constam da LUC a duplicação de penas para crimes cometidos por adolescentes e tráfico de drogas, bem como a limitação das possibilidades de liberdade condicional —o que não deixa de ser um contrassenso num país em que o consumo de maconha é legalizado.

O pacote também cria a Secretaria de Inteligência Estratégica, com a prerrogativa de acessar informações sigilosas de cidadãos sem a obrigatoriedade de uma decisão judicial, "caso sejam necessárias para a segurança do país".

Ativistas e siglas de esquerda conseguiram coletar quase 800 mil assinaturas contra a lei, mais do que o suficiente para tentar impugná-la nas urnas. O governo, por sua vez, colocou todo o seu peso em favor da LUC, tendo o próprio Lacalle Pou desempenhado o papel principal na campanha.

Se o respaldo popular ao novo pacote de leis pode impulsionar o governo, dando-lhe força para avançar em sua agenda de reformas do Estado, o poder de mobilização demonstrado pela oposição prefigura um duro embate nas eleições gerais de 2024.

O inferno são os outros

O Estado de S. Paulo.

Bolsonaro diz que eleição será ‘luta do bem contra o mal’. Ele estava com Collor e Valdemar.

No domingo passado, o presidente Jair Bolsonaro lançou ilegalmente a sua campanha pela reeleição durante um ato político-partidário em Brasília. O evento, organizado pelo PL e financiado com recursos públicos do fundo partidário, teve a forma de um comício e os discursos de um comício. E comícios, como determina a Lei Eleitoral, só estão autorizados a partir do dia 16 de agosto.

Mas, por incrível que pareça, o inequívoco ato de campanha antecipada foi o que menos chamou a atenção naquela festa fora de hora. Afinal, todos sabem que Bolsonaro jamais desceu do palanque após a posse e governa, por assim dizer, calculando o potencial de seus atos e palavras para atrair ou repelir eleitores, não para melhorar as condições de vida de todos os brasileiros.

O que merece destaque é o tom do discurso do presidente no evento, indicativo do que será a tônica de sua campanha. No palco, ao lado de familiares, ministros de Estado e aliados da estirpe de Valdemar Costa Neto e Fernando Collor de Mello, Bolsonaro classificou a eleição presidencial deste ano como uma “batalha espiritual”, uma “luta do bem contra o mal”, sendo ele, naturalmente, a encarnação do “bem”.

O que está em jogo em 2022 são questões bem mais terrenas, para as quais Bolsonaro tem poucas respostas a oferecer. Entende-se, portanto, que, para um incumbente que não tem realizações positivas para apresentar aos eleitores que justifiquem a sua recondução ao cargo – ao contrário, há muitos erros a escamotear –, só resta o recurso à narrativa sobrenatural, tratando todos os muitos milhões de brasileiros que não votam em Bolsonaro como se fossem a encarnação do demônio.

Já do lado do “bem”, segundo Bolsonaro, estão ninguém menos que Valdemar Costa Neto e Fernando Collor de Mello. O primeiro, chefão do PL, partido pelo qual Bolsonaro escolheu concorrer à reeleição, é uma das figuras mais proeminentes do escândalo do mensalão petista, tendo sido condenado e preso pelo crime de corrupção; o segundo, ex-presidente da República, brilha com vergonhoso destaque na história brasileira por ter sofrido impeachment em razão de um escândalo de corrupção.

O elástico conceito bolsonarista de “bem” ignora as suspeitas de “rachadinha” que recaem sobre o presidente e seus filhos Flávio e Carlos Bolsonaro. Ignora também o escândalo de corrupção envolvendo a aquisição de vacinas em meio à maior tragédia sanitária que já se abateu sobre o País.

E o que dizer dos pastores evangélicos que se aninharam no Ministério da

Educação, sob o beneplácito do ministro Milton Ribeiro e, ao que parece, do próprio presidente da República, para traficar influência e pedir propina para facilitar o acesso de prefeitos aos recursos do orçamento para a educação? É esse o “bem” que Bolsonaro afirma representar?

No comício em Brasília, Bolsonaro, ademais, classificou como “um velho amigo” o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Afirmou ter citado seu nome no voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff por um “dever de consciência”. Ou seja, o mesmo Bolsonaro que se apresenta ao País como a encarnação do “bem” é o indivíduo que diz ter uma dívida de consciência com um dos mais notórios torturadores da ditadura militar, o que diz muito sobre sua alma.

Por fim, seria o triunfo do “bem” sobre o “mal” a reeleição de um presidente que admite, sem meias-palavras, ter engulhos por ter de cumprir a Constituição? É claro que não.

O bem que o País precisa é o resgate da política como o meio mais eficiente para a concertação pacífica dos interesses da sociedade. É o respeito às leis e à Constituição. É a união dos brasileiros como povo, não como membros de facções irreconciliáveis. É a defesa do meio ambiente. É a valorização da verdade factual e o respeito à liberdade de imprensa. É a superação da irresponsabilidade demagógica e a retomada do diálogo, da confiança e do respeito mínimo entre os cidadãos, mesmo os divergentes. O bem só terá chance de triunfar, portanto, se Bolsonaro for derrotado.

Bolsonaro anuncia que eleição será ‘luta do bem contra o mal’. Poucos ilustram de modo tão preciso o conceito bolsonarista de ‘bem’ como Collor e Valdemar Costa Neto

Uma vergonhosa decisão judicial

O Estado de S. Paulo.

Artistas e qualquer cidadão podem se manifestar sobre política. Papel do TSE é proteger a isonomia nas eleições, não promover censura ou disparidade de tratamento

Antes do dia 15 de agosto, não se pode fazer propaganda eleitoral, dispõe a Lei das Eleições (Lei 9.504/1997). Mas essa restrição logicamente não impede o exercício da liberdade de expressão. Por isso, causou grande perplexidade a decisão do ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), proibindo manifestações políticas de artistas no festival Lollapalooza e fixando multa de R$ 50 mil por ato de descumprimento. A liminar, que pretensamente vinha aplicar a Lei das Eleições, descumpriu a própria legislação eleitoral, além de ser inconstitucional e contrária à jurisprudência do TSE.

Todo cidadão tem o direito de manifestar suas preferências políticas. Trata-se de uma liberdade fundamental, que a legislação infraconstitucional deve respeitar. Por isso, a Lei das Eleições estabelece que não configura propaganda eleitoral antecipada “a divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais” (art. 36-A, V). No entanto, Raul Araújo entendeu que balançar a bandeira de um político caracterizaria propaganda político-eleitoral. Tal decisão não tem nenhum respaldo no Direito.

Mas a liminar foi além. Para o ministro do TSE, as manifestações contrárias ao presidente Jair Bolsonaro demonstram que “artistas rejeitam (um) candidato e enaltecem outro”, o que, no seu entender, caracteriza propaganda eleitoral antecipada negativa, “em detrimento de outro possível candidato”. É um caso nítido de abuso interpretativo da lei. Sob o pretexto de fazer valer a legislação eleitoral, o ministro Raul Araújo tentou impedir o direito de crítica contra os governantes, o que fere a Constituição.

É estranho que, depois de mais de três décadas do final da redemocratização do País, seja necessário recordar isso. Todo cidadão tem o direito de criticar os governantes, em privado ou em público. No Estado Democrático de Direito, não existe o crime – ou qualquer limitação legal – referente a maldizer o rei. Não há rigorosamente nenhum problema em xingar Bolsonaro ou qualquer outro governante.

A liminar envolvendo o Lollapalooza também causou perplexidade por sua discrepância com outras decisões do próprio ministro Raul Araújo. Na quarta-feira passada, por exemplo, ele rejeitou caracterizar como propaganda eleitoral antecipada a instalação de outdoors de apoio a Jair Bolsonaro, espalhados por vários Estados. Pelo que se observa, há dias em que Raul Araújo tem especial facilidade de enxergar propaganda eleitoral antecipada, e há outros tantos nos quais os elementos de prova parecem ser sempre insuficientes.

Essa inconstância interpretativa não faz bem à Justiça, especialmente ao seu objetivo de pacificação social. A percepção de que se utilizam, na interpretação da lei, dois pesos e duas medidas diminui a confiança da população no Judiciário.

Todo esse quadro suscita justificada preocupação. Afinal, com liberdade de expressão e direitos políticos não se brinca. Mas o caso tem ainda outra circunstância peculiar e contraditória. A decisão sobre o Lollapalooza foi tomada a pedido do PL, atual partido do presidente da República. Paradoxalmente, no mesmo fim de semana em que acusou artistas de fazerem propaganda eleitoral antecipada, o PL organizou um evento de lançamento da pré-candidatura de Jair Bolsonaro à reeleição.

A incongruência é manifesta. Artistas não podem se manifestar politicamente, mas Bolsonaro e sua legenda podem fazer um evento cuja finalidade era única e exclusivamente defender e apoiar a reeleição do presidente. No ato do PL, teve até lançamento de slogan: “Capitão do povo”.

Complexa e, muitas vezes, detalhista, a legislação eleitoral tem várias falhas. No entanto, é preciso admitir que a responsabilidade por essa disparidade de tratamento não foi da Lei das Eleições, e sim de quem aplicou a lei. Cabe à Justiça Eleitoral resgatar e defender o seu propósito de preservar a igualdade de condições nas eleições. Não há isonomia se, para cada político, há uma interpretação diferente da lei.

O preço do patrimonialismo

O Estado de S. Paulo.

A quantidade de partidos e de recursos públicos absorvidos pelo Congresso no Brasil é aberrante

Frequentemente vem à tona o tema da reforma política. Mas o que deve ser reformado? Uma boa abordagem é avaliar o que no sistema brasileiro é normal e o que é anormal. Pode-se debater os vícios e virtudes do sistema político (presidencialista), da estrutura legislativa (bicameral) ou do sistema eleitoral (de representação proporcional), mas essas engrenagens têm muitos paralelos em outras democracias. O que é absolutamente anormal é o sistema partidário que as opera.

A quantidade de partidos e de recursos alocados para sua sustentação e suas campanhas é aberrantemente maior do que nos outros países. Os dados foram levantados no estudo Quão diferente é o sistema político brasileiro?.

Entre 33 países, o Brasil tem de longe o maior número de partidos efetivos (15, enquanto a média é 4,5); o maior custo por parlamentar (528 vezes a renda média do brasileiro, enquanto a média é 40); e o maior financiamento público dos partidos (US$ 446 milhões ao ano, enquanto a média é US$ 65,4 milhões).

O custo do Congresso corresponde a 0,15% do PIB – a média é 0,04%. Em 2022, serão R$ 14,5 bilhões. Entre os benefícios de cada parlamentar estão gastos mensais de até R$ 45 mil com alimentação, passagens, aluguel de veículos e divulgação; R$ 111 mil com equipes de até 25 assessores; até R$ 135 mil de reembolsos com saúde; ou R$ 4,2 mil de auxílio-moradia.

“Os próprios parlamentares definem o Orçamento do Legislativo e também os montantes do fundo eleitoral e partidário”, disse ao Estadão o analista político Bruno Carazza. “E como não há nenhum outro Poder para fazer o contrapeso, o que se observa é que esses valores estão crescendo ano após ano. Isso torna a política cada vez mais atraente: há mais dinheiro no sistema político-partidário e com controles cada vez mais frouxos.”

O maior arcabouço dessas distorções é a fragmentação partidária. A comparação internacional evidencia que, quanto maior o número de partidos, menor o grau de mudanças políticas. A fragmentação impacta o custo da governabilidade, a capacidade dos partidos de impor uma coesão entre seus membros e a distribuição de emendas parlamentares. Em relação aos fundos partidário e eleitoral, é mais negócio para um político compor o alto escalão de um partido pequeno que o baixo escalão de um grande.

Em ano eleitoral, os candidatos à direita denunciarão os abusos da esquerda – e vice-versa – e os populistas, a opressão da elite sobre o povo. Mas há uma forma de abuso que é calculadamente obnubilada nas disputas políticas e independe de espectros ideológicos ou sociais: o da classe política sobre os brasileiros. Como disse o cientista político Barry Ames: “A tragédia do sistema brasileiro não é que beneficia as elites; o problema é que beneficia primariamente a si mesmo – os políticos e servidores que operam nele”.

Qualquer reforma política que não enfrente a fragmentação dos partidos e os privilégios dos seus partidários deve ser tomada com desconfiança, como uma cortina de fumaça projetada para camuflar, perpetuar e ampliar seus abusos.

Taxa de investimento ensaia recuperação tímida e incerta

Valor Econômico

As perspectivas para o futuro são incertas, elevação da inflação, dos juros e a previsão de crescimento menor jogam contra

Quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o Produto Interno Bruto (PIB) de 2021, no início do mês, chamou a atenção o avanço dos investimentos, medido pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF). A taxa de investimento em relação ao PIB subiu de 16,6% em 2020, para 19,2% no ano passado, maior patamar desde 2014. De imediato, analistas e economistas ficaram animados porque a taxa de investimento elevada sinaliza mais crescimento à frente.

Quase um mês depois, especialistas destrincharam o resultado, relativizando a conquista, embora o número ainda seja animador. O pesquisador associado ao Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre-FGV), Gilberto Borça Jr, detalhou no artigo intitulado “Nem tudo que reluz é ouro”, publicado no Valor (22/3), os fatores que elevaram o número. Peculiaridades contábeis e fiscais do Brasil influenciam o resultado.

O fator mais relevante foi a internalização das plataformas de exploração e produção de petróleo e gás devido às mudanças nas regras contábeis que eram estabelecidas pelo Repetro. Para fazer jus aos benefícios fiscais, essas plataformas eram exportadas “pro forma”, continuando a operar localmente. Como explica Borça Jr., a operação inflava o saldo comercial e reduzia o consumo aparente de bens de capital e, portanto, os investimentos. Em contrapartida, havia o aumento das importações de serviços, com o aluguel dos equipamentos. Para efeito do PIB, havia maior participação das exportações e menor investimento.

O processo vem sendo revertido, com a internalização das plataformas que já operam no país, com o resultado prático de aumento dos investimentos e do estoque de capital da economia. Ao excluir a influência dessa operação, Borça Jr. calculou que taxa de investimento a preços correntes seria um ponto percentual menor, passando dos 19,2% para 18,2%. Ele chama a atenção também para o fator cambial, que encareceu a importação de bens de capital.

Mesmo assim, houve crescimento da FBCF e da taxa de investimento. Mas ainda muito distante dos 24% do PIB atingidos antes da crise da dívida externa, no início da década de 1980. Ajustando as contas dos últimos anos, Borça Jr. calcula que a taxa de investimento passa de 16,2% do PIB em 2019 para 16,3% em 2020 e para os 18,2% no ano passado. Os setores que puxaram o crescimento foram a construção e máquinas e equipamentos.

A recuperação da taxa de investimento também foi objeto de análise do Relatório Trimestral de Inflação do Banco Central (BC), publicado na semana passada. Box a respeito do assunto também nota a expansão da construção já no segundo semestre de 2020, quando foi incluída entre as atividades essenciais que seguiriam em operação apesar da pandemia; beneficiada pela transferência de renda para os mais vulneráveis, o que estimulou as reformas domésticas, pela queda dos juros e pela demanda de imóveis maiores em consequência da prática do home office. Em 2021, segundo Borça Jr., a construção cresceu 12,8%, a maior taxa desde 2011.

Já o aumento da compra de máquinas e equipamentos foi impulsionado pela elevação das commodities que estimulou a compra de caminhões e máquinas agrícolas. Estudo do Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fipe (Cemec-Fipe) aponta que a agricultura e a construção foram responsáveis por 2/3 do crescimento da produção de bens de capital entre 2019 e 2021, o que explica a expansão dos investimentos mesmo em um cenário macroeconômico desfavorável, analisa o coordenador do Cemec-Fipe e responsável pelo estudo, Carlos Antonio Rocca.

Analisando os dados de investimentos de 472 empresas de capital aberto, o Cemec-Fipe constatou que as ligadas à agricultura aumentaram em 52% os investimentos entre o fim de 2019 e o terceiro trimestre de 2021, levando em conta o valor dos ativos imobilizados e intangíveis, o dobro dos 24% registrados pela média das empresas com capital aberto como um todo.

As perspectivas para o futuro são incertas. No box do Relatório Trimestral da inflação, o Banco Central traçou um cenário positivo para o investimento com a contínua elevação das commodities e a apreciação cambial. Menciona também a agenda de investimentos em infraestrutura pautada pelas concessões e folga de caixa dos Estados e municípios. Por outro lado, a elevação da inflação, dos juros e a previsão de crescimento menor da economia jogam contra. As taxas altas podem enfraquecer o ímpeto da construção.

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