quinta-feira, 3 de março de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

China se tornou decisiva para a paz na Europa

O Globo

Contra os mísseis e tanques russos na Ucrânia, o Ocidente montou uma contraofensiva econômica sem precedentes. Nunca antes uma economia do porte da russa tinha sido alvo de sanções tão duras. Com a Rússia virtualmente sem acesso ao sistema financeiro internacional, assistindo à saída e ao boicote de multinacionais, sua sustentação econômica dependerá cada vez mais da China. Por isso todos os olhos estão voltados para Pequim. Faz um mês que Xi Jinping trocou juras de “amizade sem limites” com Vladimir Putin. É improvável que tenha se arrependido, embora algo tenha mudado na atitude chinesa.

Na terça-feira, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, em conversa com o colega ucraniano, Dmytro Kuleba, afirmou que seu país está pronto para ajudar a acabar com a guerra. Um eventual esforço chinês para fazer deslanchar as negociações de paz será bem-vindo. Um país simpático a Putin, que se absteve nas duas últimas votações contrárias à Rússia nas Nações Unidas, teria papel especialmente relevante neste momento.

A conversa entre os dois diplomatas foi interpretada como mudança. A China, de acordo com essa versão, percebeu o custo de ser vista como cúmplice de Putin, formando uma dupla autoritária que age em sintonia. Debate-se também se Xi foi informado dos planos de invasão por Putin ou se pediu para que fosse adiada até depois da Olimpíada de Inverno em Pequim. Caso tenha sido ludibriado, teria motivos para rever a relação com a Rússia. Mas é um debate irrelevante.

Tradicionalmente, a diplomacia chinesa fica em cima do muro nos conflitos em que não tem envolvimento direto. Desta vez, como mostram as votações na ONU, escolheu um lado. Na conversa com Kuleba, Wang disse que “a segurança de um país não pode ser alcançada em detrimento da segurança de outros ou pela expansão de blocos militares”. Tradução: a culpa pela guerra não é de Putin, mas do Ocidente ao querer expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para a Europa Oriental.

De que a China corre o risco de perder com essa postura, não há dúvida. Seus maiores parceiros comerciais são os Estados Unidos e a União Europeia, agora mais coesa do que nunca. Mas os chineses também ganham com essa posição. Quem cogita um dia retomar Taiwan não pode ser muito crítico à decisão de Putin. Fora isso, a ameaça russa na Europa desvia a atenção americana da Ásia — e, em Pequim, existe a convicção de que os Estados Unidos são uma superpotência em decadência, decidida a barrar a ascensão chinesa. Essa leitura não mudou.

Em busca de aliados, Xi investiu num relacionamento estreito com Putin. Desde que assumiu o poder, há uma década, encontrou-o 38 vezes. O dois festejaram aniversários juntos e se chamam de “melhores amigos”. Na abertura da Olimpíada em fevereiro, boicotada por autoridades americanas, Putin foi um dos poucos líderes mundiais a viajar para Pequim. Até o momento, não há sinais de que a química entre o chinês e o russo tenha se alterado. Também não há evidência de que a China tenha mudado sua visão do mundo. Ao mesmo tempo, o resgate da paz na Europa nunca dependeu tanto da disposição dos chineses em impor limites a Putin.

Descalabro no Orçamento tira verbas de obras contra as chuvas

O Globo

Um exemplo do descalabro provocado pelas emendas do relator, mecanismo que irriga o orçamento secreto comandado pelos líderes do Congresso, está no Ministério do Desenvolvimento Regional. Como revelou reportagem do GLOBO, a pasta, a segunda que mais recebeu verbas dessas emendas, não tem recursos para o básico: obras prioritárias de prevenção contra chuvas, como contenção de encostas nas áreas urbanas que concentram habitações em locais de risco.

Ao Ministério da Economia e à Casa Civil, a pasta informou em despachos internos que as obras para conter encostas e combater inundações estão sob risco de paralisação por falta de recursos. Um absurdo, pois o Desenvolvimento Regional foi agraciado com R$ 4,3 bilhões em emendas do relator, ficando atrás apenas do Ministério da Saúde (R$ 8,2 bilhões). No total, as emendas do relator no Orçamento deste ano somam R$ 16,5 bilhões. Não é possível saber quem destina esses recursos e tampouco esclarecer os critérios para a distribuição. Os efeitos nefastos, porém, estão à vista de todos.

Em meio a essas distorções, o ministério pede R$ 10,1 bilhões para atender às demandas urgentes. A Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, área vinculada ao Desenvolvimento Regional que coordena ações em todo o país para prevenir desastres, também está de pires na mão. Alega necessitar de mais R$ 371 milhões. Os recursos se destinariam sobretudo a contratos em andamento, de modo a garantir a execução e conclusão das obras.

É incrível que isso ocorra num momento em que o país é fustigado por desastres naturais em série, com centenas de mortes e milhares de desalojados. Desde o fim do ano passado, tragédias provocadas por chuvas intensas no Sul da Bahia, em Minas, no interior de São Paulo e na Região Serrana do Rio expuseram de forma contundente o despreparo das cidades para lidar com fenômenos extremos, que tendem a se tornar mais frequentes e letais em consequência das mudanças climáticas.

A ocupação desordenada das encostas e margens de rios em áreas urbanas, que tem crescido nos últimos anos, cria ambientes propícios a novos desastres. É evidente que a gravidade do problema requer ação urgente e coordenada entre prefeituras, estados e ministérios como o Desenvolvimento Regional. É impensável neste momento paralisar obras para mitigar os danos. O governo deveria se empenhar para concluir os projetos em andamento e iniciar outros diante da hecatombe. Infelizmente depara com outra tragédia, no Orçamento.

Verbas secretas são canalizadas sem nenhum tipo de critério técnico ou investimento estratégico. Em consequência, as obras realmente necessárias ficam no limbo. Tragédias como as de Petrópolis, Minas Gerais, Sul da Bahia e interior paulista estão intrinsecamente ligadas ao destino absurdo dos recursos públicos a projetos que atendem a interesses paroquiais de políticos sem compromisso com a realidade e a necessidade do país.

O amigo Vladimir

Folha de S. Paulo

Autocrata russo é espécie de modelo avançado do que Bolsonaro gostaria de ser

Esperar do presidente Jair Bolsonaro (PL) coerência na relação com outras nações e compreensão dos temas geopolíticos equivale a acreditar em milagres. A superficialidade, os rompantes irrefletidos, as contradições e a ausência de linhas de continuidade prevalecem.

Não tem sido diferente no caso da invasão militar da Ucrânia pela Rússia. Integridade territorial, autodeterminação dos povos e não intervenção em assuntos domésticos de outros países perfilam-se como princípios da Constituição e da tradição diplomática brasileira.

As manifestações do Itamaraty, embora de início estranhas a essa linhagem, aos poucos convergem para ela —como se viu nesta quarta (2), quando a Assembleia-Geral da ONU aprovou resolução que condena a agressão da Rússia.

Na sexta-feira passada (25), ocupando vaga rotativa no Conselho de Segurança, o Brasil também endossou moção que, corretamente, exigia o fim imediato do uso da força no território ucraniano.

Três dias depois do debate sobre a proposta, vetada por Moscou, a representação brasileira voltou a repudiar a invasão. Criticou também potências ocidentais por "sanções seletivas" e pelo envio de armas ao governo ucraniano, sob o argumento de que essas iniciativas apenas prolongariam a crise.

Pode-se questionar essa segunda parte da crítica, em especial no caso de uma ofensiva tão brutal e imotivada como a deslanchada pelo governo russo, mas ela não destoa da tradição pacifista e multilateralista da diplomacia brasileira.

O que contrasta, sem dúvida, com o passado e o presente do Itamaraty são as atitudes do presidente Bolsonaro sobre a crise. Ele chegou a interromper mais um longo período de ócio no litoral para fazer comentários confusos sobre como pretende lidar com a Rússia de seu mais novo amigo, Vladimir Putin.

Explicou que adotaria a "neutralidade" com o autocrata, com quem se encontrou há alguns dias durante um passeio pouco produtivo pelo Kremlin. O Brasil, afirmou, não pode ficar sem os fertilizantes importados da nação eslava.

Afora o fato de o fim da violação russa ser o melhor caminho para assegurar o fornecimento de insumos agrícolas ao Brasil, as falas de Bolsonaro também se chocam com o que o seu próprio Ministério das Relações Exteriores está fazendo.

A neutralidade a que o presidente brasileiro se refere mais parece um gesto pessoal de simpatia com o líder russo. Putin, afinal, é uma espécie de modelo avançado do que Bolsonaro gostaria de ser, mas não consegue por causa das instituições da democracia.

Prender adversários, reprimir críticos, atropelar órgãos de controle, calar veículos de imprensa. Na Rússia há; no Brasil, não.

Transparência é lei

Folha de S. Paulo

Regras de proteção de dados não podem obstruir informações públicas essenciais

Agentes do Estado não precisam de mais do que um filamento de pretexto jurídico para tentar forçar a interpretação das leis que lhes convêm, nem sempre coincidente com o interesse público.

Exemplo grotesco desse pendor veio do Exército, que, em nome da proteção à privacidade do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, determinou, com base na Lei de Acesso à Informação, sigilo de cem anos para o processo que livrou o militar da ativa de punição por ter participado de ato político de apoio a Jair Bolsonaro (PL).

Pior, a prática tortuosa vem sendo estendida até a grandes coleções de dados produzidas pela administração, com impactos deletérios para a transparência pública e até para a atividade científica.

Com efeito, agentes públicos vêm invocando dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para suprimir o acesso a microdados do Enem e de outras avaliações a cargo do Ministério da Educação, fundamentais para a produção de estudos que poderão dar sustentação a políticas públicas para o setor.

Foi à LGPD que o Gabinete de Segurança Institucional recorreu para negar-se, repetidas vezes, a divulgar listas de pessoas que visitaram o Palácio do Planalto.

E foi com base nesse mesmo diploma que se cogitou impor sigilo a dados sobre doações eleitorais. Em tempo, o presidente do TSE, Edson Fachin, afastou essa interpretação, ao menos em sua gestão.

Não se pode afirmar que seja uma surpresa. Como observou o colunista Ronaldo Lemos nesta Folha, Cláudio Weber Abramo já alertara, em 2018, que autoridades recorreriam à LGPD para sonegar dados e documentos à sociedade.

Não há dúvida de que o Estado precisa tentar salvaguardar informações sensíveis de cidadãos que estejam em seu poder. Experimentos um tanto sinistros mostraram que mesmo dados "anonimizados" podem, se houver disposição e acesso a outras bases, ser facilmente "desanonimizados". É característica dos tempos atuais.

Entretanto isso deve servir de estímulo a que se busquem novas formas de proteger registros, não a que sejam simplesmente retirados do escrutínio público.

A regra geral da administração, que vale para atos, processos e números, é a publicidade —sendo o sigilo reservado para os casos excepcionais em que há ameaça de dano concreto ao cidadão. Sem isso, é a própria democracia que não estará funcionando bem.

Não é hora de neutralidade

O Estado de S. Paulo

Até a Suíça deixou a neutralidade e apoiou as sanções, mas Bolsonaro preferiu tolerar a agressão à Ucrânia e à ordem global

Só o rápido fim da guerra, com suspensão da violência, desocupação da Ucrânia e restauração da ordem multilateral, pode interessar ao Brasil. O presidente Jair Bolsonaro, no entanto, parece desprezar essa verdade tão óbvia quanto importante. Mantida a agressão à soberania ucraniana, a insegurança continuará e todos os países serão afetados política e economicamente. Não é hora para neutralidade nem para simpatia mal disfarçada a quem viola de forma inegável e arrogante o direito internacional. Não adianta recorrer a argumentos travestidos de realismo. Nem a mais grosseira caricatura de maquiavelismo pode justificar a atual diplomacia presidencial. Além de política e moralmente indefensável, a tolerância ao brutal expansionismo de Vladimir Putin é mau negócio.

Se a guerra se prolongar, prolongadas serão também as sanções. As maiores perdas poderão caber à economia russa, mas todos pagarão um preço, incluído o Brasil. Se ficar mais difícil importar da Rússia, o agronegócio poderá ter dificultado seu acesso ao principal fornecedor de certos fertilizantes – 76% do nitrogênio, 55% do fósforo e 94% do potássio aplicados nas lavouras brasileiras. Isso prejudicará o plantio, no segundo semestre, dos cereais e oleaginosas da próxima safra de verão.

Também as vendas do Brasil à Rússia poderão ser afetadas, mas com pouco efeito no resultado geral do comércio. Em 2021, o mercado russo absorveu exportações brasileiras no valor de US$ 1,59 bilhão, soma equivalente a apenas 1,59% do total. Na lista de países compradores de produtos brasileiros, a Rússia apareceu, no ano passado, em 36.º lugar. Em 2006, 2,5% das vendas externas do Brasil foram destinadas ao mercado russo, mas essa fatia diminuiu a partir do ano seguinte, talvez por negligência brasileira.

Se depender do empresariado da Rússia, parece pouco provável uma redução das vendas de fertilizantes ao Brasil. Esse empresariado já indicou ao presidente Putin sua preocupação com as consequências econômicas da guerra. Será uma surpresa se renunciar a qualquer esforço para manter os negócios com clientes do mundo capitalista, especialmente se essa clientela estiver ligada ao agronegócio brasileiro.

Mas o risco de empecilhos ao comércio é inegável, se a guerra e as sanções forem mantidas por muito tempo. Problemas poderão surgir nas cadeias globais de suprimentos, alertou a diretora-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala. Ela destacou possíveis altas de preços, com danos principalmente para as populações pobres, se houver redução das exportações de cereais da Rússia e da Ucrânia, países grandes produtores de trigo e de milho.

O Brasil, diria um analista apressado, até poderia beneficiar-se com maior exportação de alguns produtos. Mas apostar em ganhos provenientes de uma guerra é perigoso econômica e politicamente e inaceitável pelos critérios da convivência segura.

Esses critérios foram várias vezes menosprezados, nos últimos três anos, pelo Executivo brasileiro, em manifestações contrárias à ordem multilateral. Sua política antiambientalista, com desastrosos efeitos diplomáticos, naturais e humanos, é um claro exemplo dessa oposição a valores defendidos internacionalmente.

As características bolsonarianas também se manifestam na identificação do presidente brasileiro com chefes autoritários, como o russo Vladimir Putin e o húngaro Viktor Orbán. Ambos foram visitados na semana anterior à invasão da Ucrânia. Consumada a violação, o Executivo brasileiro limitou-se a defender negociações. O governo da Suíça, país tradicionalmente neutro, aderiu às sanções. “Estamos com o povo ucraniano na travessia desses horrendos acontecimentos”, disseram os líderes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, ao anunciar ajuda à Ucrânia.

As escolhas são claras e nem o malabarismo da diplomacia brasileira esconde a tolerância à brutalidade de Putin. Serão os dirigentes do FMI, do Banco Mundial e da Suíça incapazes de entender o bom negócio de Bolsonaro?

Perigo real e imediato

O Estado de S. Paulo

Relatório sobre o clima aponta risco de queda da produção agrícola, o que pode aumentar o número debrasileiros que vivem em insegurança alimentar

Para muita gente, no Brasil e no mundo, os riscos associados às mudanças climáticas induzidas pelo homem ainda são percebidos como um tema distante, restrito a fóruns internacionais, universidades, organizações não governamentais e setores da imprensa. É compreensível que seja assim, particularmente em países como o Brasil, que reúnem enorme contingente de cidadãos que têm entre suas preocupações principais encontrar um trabalho, mantê-lo e garantir comida na mesa. É muito difícil pensar em crise climática, ou em qualquer outro assunto, quando se está premido pela fome. Mas, como a pandemia de covid-19 tristemente lembrou a todos, a natureza se impõe sem ponderações. Os efeitos das mudanças climáticas estão cada vez mais próximos de nós e, além de criarem novos problemas para a humanidade, aprofundarão mazelas já existentes.

Metade da população mundial (3,6 bilhões de pessoas), nada menos do que isso, está sob ameaça direta dos efeitos mais nocivos das mudanças climáticas, como enchentes, deslizamentos de terra, secas, ondas de frio e de calor excessivos, insegurança alimentar e crises migratórias, entre outros. Foi o que apontou o mais recente Painel Intergovernamental sobre o Clima (IPCC), relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 28 de fevereiro. O objetivo da ONU ao produzir e divulgar esse documento é avaliar as vulnerabilidades naturais e socioeconômicas dos países às mudanças climáticas, antevendo seus possíveis impactos locais e regionais e, principalmente, propondo medidas de prevenção ou adaptação a fim de mitigar riscos.

No que concerne ao Brasil, o IPCC aponta risco de queda importante na produção agrícola, o que pode aumentar ainda mais o número de brasileiros que vivem em insegurança alimentar. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil 2021, também realizado pela ONU, apurou que há 116,8 milhões de brasileiros (55% da população) que já convivem com algum grau de insegurança alimentar. Destes, 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade diária suficiente e 19 milhões de brasileiros convivem com a fome. Fato é que isso nada tem a ver com escassez de alimentos, mas falta de renda. As mudanças climáticas, portanto, agravarão esse problema.

Vale lembrar que, no início deste ano, uma seca e uma onda de calor sem precedentes recentes arrasaram lavouras nas Regiões Sul e Centro-Oeste, provocando um prejuízo de cerca de R$ 45 bilhões para o agronegócio. As culturas de soja e milho foram as duas mais afetadas, justamente os principais grãos da pauta de exportações do País. Especialistas em clima foram taxativos ao atribuir esses fenômenos às mudanças climáticas.

A degradação da Região Amazônica se ampliará com os efeitos negativos das mudanças climáticas provocadas pelo homem, com reflexos em todo o País. O IPCC aponta ainda para o risco de uma crise humanitária decorrente da migração das populações da Região Nordeste mais afetadas por eventos climáticos extremos, como secas e inundações cada vez mais frequentes.

Essa é a dura realidade do País, tal como está posta. Tão pior ficará se o governo brasileiro, de uma vez por todas, não der às mudanças climáticas a devida importância que o problema tem, a começar por dar credibilidade a um documento como o IPCC. Para o cidadão que está mais preocupado em levar comida para casa do que com as mudanças climáticas, há perdão. Para um governo negligente, malgrado ter acesso a toda informação disponível e poder de decisão, não há. “Abdicar da liderança é criminoso”, advertiu o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A essa altura, é evidente que não se pode esperar nada do presidente Jair Bolsonaro, alguém que enxerga os alertas científicos sobre os riscos ambientais como “a mesma xaropada de sempre”. Portanto, a medida mais urgente que o País tem de adotar para impedir ou mitigar os efeitos das mudanças climáticas é não reeleger Bolsonaro. Sua estupidez orgulhosa e seu desdém por questões relacionadas à proteção do meio ambiente, mais do que levar o Brasil à condição de pária internacional, representam perigo real e imediato para os brasileiros mais vulneráveis.

Inflação e commodities voltam a ajudar os governos

Valor Econômico

A melhora efetiva das contas públicas depende de reformas para conter as despesas obrigatórias

A invasão da Ucrânia pela Rússia tende a provocar um novo impulso na inflação global, em decorrência do encarecimento das commodities, como energia, alimentos e metais. A aceleração da alta de preços, como de costume, terá repercussões distributivas importantes e, no Brasil, os governos tenderão a ser um dos mais importantes ganhadores.

Os dados das contas fiscais de janeiro mostram que, mesmo antes do início do conflito, já havia um impacto positivo das surpresas inflacionárias na arrecadação e nos níveis de endividamento do setor público. Mas a melhora tende a se dissipar, já que o que importa no longo prazo são as variáveis reais.

O superávit primário da União, dos Estados, dos municípios e das empresas estatais chegou a impressionantes R$ 101,8 bilhões em janeiro. A dívida líquida do setor público caiu a 79,6% do Produto Interno Bruto (PIB), portanto abaixo da marca psicológica de 80% do PIB. O pano de fundo dessa melhora é o prolongamento do surto inflacionário que o Brasil e o mundo vivem desde fins de 2020, refletindo os impactos diretos da pandemia e os estímulos monetários e fiscais injetados por bancos centrais e governos.

As estimativas dos analistas para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para 2022, nas últimas semanas, se deslocaram de perto de 5% para 5,6%. Nesse percentual, distancia-se ainda mais do centro da meta de inflação, de 3,5%, e supera o intervalo de tolerância, que vai até 5%.

A inflação foi forte particularmente em janeiro, ajudando a baixar a dívida bruta. O IPCA chegou a 0,54%, e o Índice Geral de Preços - Mercado (IGP-M), a 1,82%. O efeito baixista do crescimento nominal da economia na dívida bruta foi de 0,8 ponto percentual apenas no primeiro mês do ano.

A inflação, junto com a alta dos preços de commodities, são motores importantes da arrecadação. A receita tributária federal aumentou 18,3% ante janeiro de 2021, chegando a R$ 235,3 bilhões. O aumento da arrecadação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) fortaleceu o resultado primário dos Estados e municípios, que somou R$ 20 bilhões em janeiro.

Naturalmente, os resultados acima se devem também ao esforço para segurar as despesas, apesar de o governo Bolsonaro ter tomado medidas de expansão fiscal no ano eleitoral que enfraqueceram o teto de gastos.

Como os números acima são referentes a janeiro, ainda não refletem os mais recentes impactos que o conflito no Leste Europeu teve sobre os preços das commodities e na inflação global. Muitos analistas econômicos estão refazendo suas estimativas para a inflação deste ano que, dependendo da intensidade e duração do choque externo, poderá chegar mais perto de 6%.

O avanço da inflação melhora a perspectiva fiscal de curto prazo. Não será surpresa se, nas próximas semanas, assistirmos a uma alta do superávit primário previsto e queda nas estimativas da dívida bruta. No entanto, o cenário fiscal para os próximos anos tende a ficar um pouco mais incerto.

Os funcionários públicos federais aumentaram a pressão por reajustes, e vários governos regionais já se anteciparam com a concessão de aumentos para compensar as perdas salariais provocadas pela inflação. Uma boa parte da conta deverá ser paga apenas no futuro, quando se espera que a ajuda da inflação na arrecadação dos governos tenha perdido fôlego.

O clima de euforia com a arrecadação encoraja a União a promover estímulos pelo lado da receita. É o caso do corte de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Apesar de eventuais méritos de desonerar e dar competitividade a um setor importante da economia, a medida não tende a ser duradoura, porque não está sendo desenhada, no conjunto, de forma fiscalmente sustentável.

A inflação traz ganhos ao governo apenas quando não é antecipada pelos agentes econômicos. O Banco Central já colocou os juros em dois dígitos e, segundo previsões dos analistas do mercado, deverá levá-los a pelo menos 12,25% nos próximos meses. O aperto monetário já tem repercussões nas despesas com juro da dívida. A alta dos encargos tende a perdurar, já que o Banco Central e o mercado reestimaram para cima a taxa de juros neutra da economia.

Assim, a alta da inflação cria apenas uma ilusão. A melhora efetiva das contas públicas depende de reformas para conter as despesas obrigatórias e para aumentar o crescimento potencial da economia.

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