sábado, 5 de março de 2022

Pablo Ortellado: Por que a postura de Bolsonaro sobre a Rússia é ambivalente?

O Globo

A leitora ou o leitor deve ter notado que a posição do governo Bolsonaro com relação à invasão russa à Ucrânia é para lá de ambivalente. De um lado, ele visitou Putin às vésperas da guerra e disse que era “solidário à Rússia”; depois, desautorizou o vice-presidente, que havia condenado a invasão; e, numa entrevista no domingo passado, disse que a posição do Brasil é de “neutralidade” e que as mortes de ucranianos não deveriam ser chamadas de “massacre”. De outro, o Brasil, que atualmente ocupa uma cadeira rotativa no Conselho de Segurança da ONU, apoiou resolução que condenava as “agressões” da Rússia e depois, novamente, apoiou resolução da Assembleia Geral que “deplora nos termos mais fortes a agressão da Rússia contra a Ucrânia”. Por que essa dualidade tão marcada entre as declarações do presidente e as posições oficiais do país?

Uma explicação simples é que o Itamaraty está contendo os danos que a simpatia de Bolsonaro por Putin poderia provocar aos interesses brasileiros. Bolsonaro nunca escondeu sua queda pelo projeto político conservador e autoritário de Putin. No entanto, com a invasão à Ucrânia, a Rússia se converteu em pária internacional, universalmente condenada. O Brasil não tem vínculo político, militar ou econômico relevante que justificasse uma tomada de posição em defesa da Rússia. Os laços objetivos são tão reduzidos que não justificariam sequer a abstenção nas condenações, como fizeram Índia e China. A dualidade adotada pelo governo Bolsonaro se explicaria pelo descompasso entre a diplomacia profissional do Itamaraty e a política internacional selvagem do presidente.

Uma explicação alternativa seria que Bolsonaro joga estrategicamente com o discurso populista do “poder impotente”. Movimentos populistas, como o bolsonarismo, se caracterizam pela adoção de uma retórica que opõe o povo às elites corrompidas. O líder populista se coloca então como representante do povo que se elege com o objetivo de expurgar as elites. Porém, uma vez no poder, ele precisa se diferenciar das velhas elites, resolvendo o paradoxo de ser uma elite antielites. É nesse momento que adota o discurso do poder impotente, do presidente que não consegue governar porque seu poder é contido pelo STF, pela Anvisa, pelos governadores e... pelo Itamaraty.

É assim, apresentando-se como impotente, que se descola da responsabilidade de chefe do Estado, denunciando o “verdadeiro poder”, que sempre está alhures. Essa posição permite ao líder mobilizar continuamente sua base num governo-movimento em combate sem fim contra o establishment. Nessa explicação, a dualidade do governo Bolsonaro se explicaria por uma ambivalência estratégica que oporia o apoio político de Bolsonaro ao projeto de Putin às decisões burocráticas do Itamaraty, apresentadas como poder profundo, como um deep state.

A terceira explicação para a ambivalência é um pouco especulativa. Ela parte de duas perguntas: por que Bolsonaro se reuniu com Putin às vésperas da guerra —que já era iminente —supostamente para discutir o comércio de fertilizantes? E por que, na sua comitiva, não levou o ministro da Economia, mas seu filho Carlos, que comanda a estratégia de comunicação, e o assessor Tércio Arnaud, que comanda o gabinete do ódio?

A Rússia tem sido acusada de interferir em campanhas eleitorais pelo mundo, desde a campanha presidencial americana de 2016, até as eleições alemãs e francesas de 2017, passando pelo referendo do Brexit no Reino Unido e pelo referendo da independência da Catalunha na Espanha. Há o temor, sugerido pelo presidente do TSE, ministro Edson Fachin, de eventual ação da Rússia, “que tem relutado em sancionar os cibercriminosos que buscam destruir a reputação da Justiça Eleitoral e aniquilar com a democracia”.

Além disso, no começo da semana, Bolsonaro reencaminhou pelo WhatsApp uma mensagem conspiracionista apócrifa sobre a “Nova Ordem Mundial”, onde se diz que “se Bolsonaro não tivesse corrido para fazer aliança com Putin (fertilizantes…), nem eleições teríamos” — sugerindo que o tema do encontro com Putin não foi o comércio de fertilizantes, mas a intervenção nas eleições brasileiras. Nessa explicação mais especulativa, a ambivalência da posição do governo Bolsonaro seria fruto da tensão entre os interesses diplomáticos do Brasil, defendidos pelo Itamaraty, e o apoio implícito que Bolsonaro teria dado a Putin em troca da colaboração com os esforços de desestabilizar as eleições de outubro.

 

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