O Globo
A leitora ou o leitor deve ter notado que a posição do governo Bolsonaro com relação à invasão russa à Ucrânia é para lá de ambivalente. De um lado, ele visitou Putin às vésperas da guerra e disse que era “solidário à Rússia”; depois, desautorizou o vice-presidente, que havia condenado a invasão; e, numa entrevista no domingo passado, disse que a posição do Brasil é de “neutralidade” e que as mortes de ucranianos não deveriam ser chamadas de “massacre”. De outro, o Brasil, que atualmente ocupa uma cadeira rotativa no Conselho de Segurança da ONU, apoiou resolução que condenava as “agressões” da Rússia e depois, novamente, apoiou resolução da Assembleia Geral que “deplora nos termos mais fortes a agressão da Rússia contra a Ucrânia”. Por que essa dualidade tão marcada entre as declarações do presidente e as posições oficiais do país?
Uma explicação simples é que o Itamaraty
está contendo os danos que a simpatia de Bolsonaro por Putin poderia provocar
aos interesses brasileiros. Bolsonaro nunca escondeu sua queda pelo projeto
político conservador e autoritário de Putin. No entanto, com a invasão à
Ucrânia, a Rússia se converteu em pária internacional, universalmente
condenada. O Brasil não tem vínculo político, militar ou econômico relevante
que justificasse uma tomada de posição em defesa da Rússia. Os laços objetivos
são tão reduzidos que não justificariam sequer a abstenção nas condenações,
como fizeram Índia e China. A dualidade adotada pelo governo Bolsonaro se
explicaria pelo descompasso entre a diplomacia profissional do Itamaraty e a
política internacional selvagem do presidente.
Uma explicação alternativa seria que
Bolsonaro joga estrategicamente com o discurso populista do “poder impotente”.
Movimentos populistas, como o bolsonarismo, se caracterizam pela adoção de uma
retórica que opõe o povo às elites corrompidas. O líder populista se coloca
então como representante do povo que se elege com o objetivo de expurgar as
elites. Porém, uma vez no poder, ele precisa se diferenciar das velhas elites,
resolvendo o paradoxo de ser uma elite antielites. É nesse momento que adota o
discurso do poder impotente, do presidente que não consegue governar porque seu
poder é contido pelo STF, pela Anvisa, pelos governadores e... pelo Itamaraty.
É assim, apresentando-se como impotente,
que se descola da responsabilidade de chefe do Estado, denunciando o
“verdadeiro poder”, que sempre está alhures. Essa posição permite ao líder
mobilizar continuamente sua base num governo-movimento em combate sem fim
contra o establishment. Nessa explicação, a dualidade do governo Bolsonaro se
explicaria por uma ambivalência estratégica que oporia o apoio político de
Bolsonaro ao projeto de Putin às decisões burocráticas do Itamaraty,
apresentadas como poder profundo, como um deep state.
A terceira explicação para a ambivalência é
um pouco especulativa. Ela parte de duas perguntas: por que Bolsonaro se reuniu
com Putin às vésperas da guerra —que já era iminente —supostamente para
discutir o comércio de fertilizantes? E por que, na sua comitiva, não levou o
ministro da Economia, mas seu filho Carlos, que comanda a estratégia de
comunicação, e o assessor Tércio Arnaud, que comanda o gabinete do ódio?
A Rússia tem sido acusada de interferir em
campanhas eleitorais pelo mundo, desde a campanha presidencial americana de
2016, até as eleições alemãs e francesas de 2017, passando pelo referendo do
Brexit no Reino Unido e pelo referendo da independência da Catalunha na
Espanha. Há o temor, sugerido pelo presidente do TSE, ministro Edson Fachin, de eventual ação da
Rússia, “que tem relutado em sancionar os cibercriminosos que buscam destruir a
reputação da Justiça Eleitoral e aniquilar com a democracia”.
Além disso, no começo da semana,
Bolsonaro reencaminhou pelo WhatsApp uma mensagem conspiracionista
apócrifa sobre a “Nova Ordem Mundial”, onde se diz que “se Bolsonaro não
tivesse corrido para fazer aliança com Putin (fertilizantes…), nem eleições
teríamos” — sugerindo que o tema do encontro com Putin não foi o comércio de
fertilizantes, mas a intervenção nas eleições brasileiras. Nessa explicação
mais especulativa, a ambivalência da posição do governo Bolsonaro seria fruto
da tensão entre os interesses diplomáticos do Brasil, defendidos pelo
Itamaraty, e o apoio implícito que Bolsonaro teria dado a Putin em troca da
colaboração com os esforços de desestabilizar as eleições de outubro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário