sexta-feira, 25 de março de 2022

Pedro Doria: A Dissonância cognitiva explodiu

O Globo

Fossem apenas os militantes de redes sociais, seria menos grave. Mas o fato de, nas últimas semanas, a imprensa de esquerda na internet brasileira ter incorporado a sua pauta a desinformação russa deveria preocupar a todos. Pode não ser óbvio, mas é a democracia brasileira que fica em risco.

A desinformação cumpre um ciclo para que ponha em xeque democracias. Atinge primeiro os com maior tendência a adotar teorias conspiratórias, que se agrupam como seita nas redes. No segundo momento, porque estão em busca de audiência, veículos noticiosos percebem ali um público fiel potencial e começam a reverberar as informações falsas.

Quando fez explodir o número de fontes de notícias, a internet criou variedade, mas também desorientação. Sem entender bem em quem confiar, muitos passaram a usar como bússola a busca por veículos que confirmam suas visões. E muitos veículos escolheram alimentar esse processo. Em vez de desafiar seus leitores a pensar, contentam-se em confirmar seus preconceitos.

A ameaça à democracia se concretiza quando os políticos entram no jogo. Com os veículos preferidos de seus eleitores repetindo em uníssono uma mesma versão dos fatos, parlamentares e candidatos se sentem obrigados a adotar as teses sob o risco de, em caso contrário, perder votos.

Foi o que aconteceu na direita de inúmeros países, incluindo o Brasil. Foi o que criou um universo paralelo descolado da realidade, que levou ao QAnon americano e pôs no Planalto Jair Bolsonaro. É inacreditável que, hoje, quem lê os principais sites da esquerda brasileira encontrará a mesmas teses sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia que estão nos sites da extrema direita americana ou mesmo nos programas mais radicais da Fox News.

Para repetir o discurso pró-Putin, a dissonância cognitiva necessária é imensa. É preciso deixar de lado tudo o que a esquerda latino-americana defendeu nos últimos 50 anos.

O presidente russo argumenta que o povo ucraniano, na verdade, não existe, é uma invenção recente. O fato de que Kiev tem 600 anos mais que Moscou, claro, é detalhe. É o mesmo argumento que a extrema direita israelense usa a respeito dos palestinos — são um povo que “não existe”.

O argumento realista de política externa, que considera inevitável que potências militares ignorem a soberania dos vizinhos em nome de sua defesa, é outro problema. É o argumento de Henry Kissinger para defender a política de intervenção na América Latina, ajudando na formação de inúmeras ditaduras militares nos anos 1960 e 1970.

A Rússia tem uma longa tradição em técnicas de manipulação da realidade. Quem conhece os Protocolos dos Sábios de Sião sabe que, mais de um século depois, eles não morrem. Ainda encontraremos alguém, em alguma esquina perdida, dizendo que judeus manipulam as finanças mundiais. É uma peça de desinformação criada pelo serviço secreto czarista bem antes da Revolução de 1917. As fotografias manipuladas de Josef Stálin são outro exemplo. Vladimir Putin, em Dresden, na Alemanha dos anos 1980, era operador de contrainformação da KGB.

Na realidade paralela, há um genocídio ocorrendo no leste da Ucrânia. Quem diz não é a ONU, é o Kremlin. Fonte única. A Ucrânia é nazista. Seu presidente é judeu, e a extrema direita não elegeu parlamentares no último pleito — mas não são fatos que negarão a versão. Um laboratório biológico conhecido, documentado, público, vira fonte secreta de bioarmas da CIA...

No Brasil, já perdemos para a realidade paralela um bom pedaço da direita. Se os políticos de esquerda embarcarem na onda de seus militantes e jornalistas, perderemos um naco da esquerda. Quando a percepção da realidade é manipulável, democracias se dissolvem.

 

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