quarta-feira, 20 de abril de 2022

Armando Castelar Pinheiro*: Riscos inflacionários

Valor Econômico

Está na hora de os BCs encararem a inflação mais de frente

A alta do IPCA em março, de 1,62%, maior do que todas as outras registradas no mesmo mês desde o lançamento do Plano Real, 28 anos atrás, assustou. Não apenas pelo resultado em si, mas também pelo contexto em que veio, com a inflação rodando em patamares muito acima das metas fixadas para a autoridade monetária, registrando taxas que surpreendem sempre para cima, às vezes parecendo que a inflação pode sair de controle.

Nos 12 meses até março, o IPCA subiu 11,3%. A meta para 2021 era de 3,75%, para este ano é de 3,5%. A realidade e a meta não conversam uma com a outra. De fato, este ano o IPCA já subiu 3,2%, praticamente “atingindo” a meta para 2022 apenas no primeiro trimestre do ano. E meta que não conversa com a realidade perde sua funcionalidade de ancorar as expectativas, claro.

Registre-se que a desconexão entre metas e resultados não ocorre só no Brasil. Nos EUA, onde o Fed, o banco central (BC) de lá, tem uma meta de 2%, a inflação em março foi de 1,2%, acumulando alta de 8,5% em 12 meses, a mais elevada desde 1981. Na Área do Euro, onde a meta também é de 2%, março registrou inflação de incríveis 2,5%, acumulando 7,5% em 12 meses, mais um novo recorde desde que o euro entrou em cena.

Nos três casos, os BCs estão, no jargão de economia, “atrás da curva” - isto é, a reboque dos fatos, tendo apertado menos a política monetária do que a realidade exigia. O atraso é menor no Brasil, mas gigante nos casos do Fed e do Banco Central Europeu (BCE).

A pergunta que fica por responder é se esse atraso decorre de os BCs estarem sendo surpreendidos pela realidade ou se é por escolha, pela decisão de não usar todos os instrumentos à sua disposição para trazer a inflação para a meta.

O resultado de março foi uma surpresa, explicada pela guerra na Ucrânia, pelas sanções impostas em reação a ela e pelo impacto disso sobre as commodities. No nosso caso, mais de metade (56%) da alta do IPCA no mês se explica pela elevação dos preços da gasolina (7%) e dos alimentos (3,1%), resultado direto desses acontecimentos. Nos EUA, a alta da gasolina (18,3%) explica mais da metade da inflação de março, algo semelhante ocorrendo na área do euro, onde os preços de energia subiram 12,5% em março.

As “surpresas”, porém, não são de agora; faz tempo que acontecem. Desde o Relatório de Inflação de setembro de 2020, nosso BC vem subestimando, de forma sistemática, em 1 ponto percentual, em média, a inflação do três meses seguintes. Claro, a pandemia é parte da explicação, mas só parte. Quem sabe, a recomendação de Larry Summers ao Fed, em entrevista semana passada à Bloomberg, também se aplica, em algum grau, ao nosso BC, de que ele “deveria estar reconhecendo muito mais visivelmente que esteve errado e buscando entender e aprender com seus erros”.

A realidade, porém, é que os BCs seguem reticentes em desmontar mais rapidamente os estímulos monetários adotados em reação à pandemia. Semana passada, por exemplo, o BCE decidiu manter a taxa de juros negativa e reduzir apenas gradualmente a emissão de moeda para a compra de títulos públicos. O Fed pelo menos já subiu a taxa de juros, para 0,375% ao ano, e adotou uma retórica mais agressiva. Porém, a sinalização segue sendo de um aperto modesto, a ponto de James Bullard, membro em geral moderado do Copom americano, o Fomc, acusar o Fed de embarcar em uma “fantasia”, ao supor ser possível trazer a inflação para a meta sem um aumento mais agressivo dos juros.

Fica claro que a postura dos BCs é uma opção consciente, não resultado de surpresas, apenas. Há três possíveis motivos para isso.

Um, que a inflação resulta de um choque de oferta, causado pela pandemia e, agora, pela guerra, ao qual a política monetária não deve, nem consegue, se contrapor. Além disso, seria um choque transitório, que se resolveria sozinho. Essa explicação vem perdendo força, conforme as expectativas se desancoram e o processo inflacionário se espalha, com algo entre 75% a 90% dos preços subindo a cada mês.

Dois, que o custo de combater uma inflação tão alta seria muito elevado, em termos de retração da atividade e aumento do desemprego. Mas, especialmente no Brasil, já deveríamos estar vacinados contra esse discurso: nada afeta tanto os mais pobres como a inflação alta. Basta ver o quanto esta já derrubou a renda das famílias.

Por fim, há a preocupação com o fiscal. No Japão, na Europa e nos Estados Unidos, já há algum tempo a política monetária virou um braço auxiliar da política fiscal, com a compra de títulos públicos pelos BCs reduzindo o custo da dívida pública. A inflação alta ajudou ainda mais esse processo, tornando os juros reais bem negativos e cortando o valor real das despesas públicas. O Brasil é um claro exemplo de onde isso vem ocorrendo. Elevar a taxa de juros aumentaria o custo de rolar essa dívida, enquanto a inflação menor corroeria menos as despesas e a retração da atividade reduziria as receitas.

Em minha visão, nenhum desses três motivos é sólido o bastante para justificar os riscos que trazem. Está na hora de os BCs encararem a inflação mais de frente.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre

 

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