sábado, 30 de abril de 2022

Dora Kramer: Culpas no cartório

Revista Veja

A alta ansiedade que assola a República tem razões que os poderes não deveriam ignorar

O Brasil tem um presidente atrevido, todo mundo vê; disso nem seus adoradores discordam. O que não se mostra evidente à primeira vista é a seletividade da ousadia. Quando sente o frio do perigo na nuca, Jair Bolsonaro recua para simular trégua. Se avalia o risco como de baixo custo com possibilidade de alto ganho, se atreve e avança para o confronto.

Fez agora ao se escudar na Constituição para derrubar uma decisão de dez dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal pela condenação do deputado Daniel Silveira a oito anos e nove meses de prisão por incitação à violência contra o STF e alguns de seus integrantes.

E por que agiu assim, inclusive recusando de maneira debochada uma sugestão do ex-presidente Michel Temer, a quem havia ouvido para recuar lá no dia 7 de setembro de 2021? A Bolsonaro só interessa o jogo do próprio destino. A República que se vire. Naquela ocasião, o presidente soube que o Supremo estava disposto a endossar um pedido de impeachment, tornando difícil de o presidente da Câmara ignorá-lo.

O endosso do STF daria ao requerimento um peso diferente em relação àqueles outros mais de 100 aos quais Arthur Lira reservara, e ainda reserva, completa indiferença. Passados sete meses e faltando menos de meio ano para as eleições, a conjuntura é outra. Além de não comportar condições objetivas para processo de impedimento, a maior parte do Congresso está dominada pela entrega do manejo do Orçamento da União aos parlamentares do Centrão, hoje ampliado e majoritário.

Bolsonaro deixou isso muito claro quando explicou a seus interlocutores nas internas no Palácio que um dos fatores para a concessão do perdão a Silveira foi a certeza de que o Legislativo não teria “força para reagir”. Força teria se houvesse vontade, mas na ausência desta prevalece a fragilidade conveniente evidenciada pela via da omissão. Há vários exemplos, mas, como o caso em tela é o de Daniel Silveira, lembremos: há nove meses dorme no Conselho de Ética um pedido de abertura de processo por quebra de decoro parlamentar.

Sem a sombra da mais ínfima dúvida, o presidente da República é o principal responsável pelo ambiente de confrontação institucional que se caracteriza pelo desequilíbrio entre os três poderes, seja por ações ou omissões lastreadas no excesso. Mas a alta ansiedade que assola o país tem razões que, além do Executivo, o Legislativo e o Judiciário não poderiam desconhecer pela própria razão de suas atribuições.

Há disputa onde a Constituição manda que impere a equivalência das potências de cada um sob o rito da harmonia. A necessidade de respostas firmes de um lado (o do Judiciário) e a conveniência da cautela de outro (o do Legislativo) não justificam o embarque na onda do presidente sem o devido senso tático sobre os efeitos dessa ou daquela atitude. O critério serve para avanços e recuos.

O Supremo Tribunal clama por respeito e reclama de ser desrespeitado. Tem razão, mas nem sempre contribui para se dar ao respeito. Diferentemente do Legislativo e do Executivo, é (ou seria) inerente à atividade do Judiciário ser o menos falante fora dos limites dos autos, até pelo seu poder de dar a última palavra.

A despeito dos méritos do embate que trava sozinho na defesa do estado de direito, o STF tem se deixado atrair por aquilo que o ministro Luís Roberto Barroso chamou recentemente de “fogueira das paixões políticas” para apontar um desvio institucional que muitas vezes a Corte tem cometido, dando combustível ao confronto. Com isso expõe o caráter autoritário do governo, mas chega aonde?

A nenhum lugar. Ou, por outra, senta praça no centro do terreno do conflito, quando seu papel é o de promover o entendimento conforme o imperativo da lei. O desmonte da Operação Lava-Jato, a revisão de condenações anteriormente confirmadas por três instâncias, ministros absolutamente parciais anulando decisões por alegada ausência de imparcialidade, nada disso ajuda o STF a atrair a confiança da sociedade. Pior, alimenta a desconfiança.

Reagir, sim, é preciso, mas é imprescindível ter frieza e consciência sobre o papel de cada um. Sob pena de cair numa dinâmica de extrapolações mútuas, cujo produto é a instituição de um cenário de incivilidade geral com resultados nefastos ao bom andamento dos trabalhos democráticos.

Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787

 

  

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