O Globo
Na última semana, vimos mais uma rodada
desta espécie de dança entre a Justiça e militares ligados ao presidente. De um
lado, há o movimento por parte desses militares para semear desconfiança no
sistema eleitoral, ao que tudo indica, preparando a alegação de fraude caso
Bolsonaro perca as eleições por margem reduzida. De outro, há o movimento da
Justiça para dirimir quaisquer dúvidas sobre as urnas e envolver os militares
na preparação das eleições.
O TSE criou em setembro de 2021 uma
Comissão de Transparência nas Eleições (CTE) para fazer a fiscalização e
auditoria do processo eleitoral. Nessa comissão, além de representantes de ONGs
e universidades, uma vaga foi reservada aos militares. Segundo o jornal Valor
Econômico, o TSE convidou um almirante para a vaga, mas o Ministério da Defesa
ficou incomodado com o convite e terminou indicando o general Heber Portella,
alinhado com o Planalto.
Na comissão, o general Portella tem feito críticas detalhadas e incisivas às urnas. Algumas foram vazadas nas redes bolsonaristas, no espírito de mostrar o caráter “vigilante” das Forças Armadas. Isso levou o TSE a publicar respostas a elas (um relatório de mais de 700 páginas!). Depois, o general preparou uma réplica minuciosa — que permanece em sigilo —, e o TSE respondeu numa tréplica publicada pela imprensa.
É a esse jogo duro do representante da
Defesa na comissão que o ministro Luís Roberto Barroso aludiu num debate
acadêmico na Alemanha no último domingo, ao dizer que as Forças Armadas têm
sido orientadas a atacar e a desacreditar o processo eleitoral. A Defesa
respondeu à declaração em nota oficial, dizendo que a insinuação do ministro
era “ofensa grave” e que os militares “apresentaram propostas colaborativas,
plausíveis e exequíveis no âmbito da Comissão de Transparência das Eleições”.
Na quarta-feira, Bolsonaro disse num evento
que uma solução para a falta de confiança no sistema eleitoral seria uma
apuração paralela das eleições pelas Forças Armadas: “Quando encerra eleições e
os dados chegam pela internet, tem um cabo que alimenta a ‘sala secreta do TSE’
(...), onde meia dúzia de técnicos diz ‘quem ganhou foi esse’. Uma sugestão é
que, nesse mesmo duto, seja feita uma ramificação, um pouco à direita, porque
temos um computador também das Forças Armadas para contar os votos”. Um dia
depois, em sua live semanal, o presidente disse que o TSE deveria atender às
sugestões das Forças Armadas “para o bem de todos”.
Não existe uma sala secreta que recebe os
dados das urnas e declara o vencedor. A proposta de uma apuração em paralelo
pelos militares deveria acender um alerta. Assim como também deveria acender um
alerta a proposta da Defesa na comissão do TSE de que se tomem “medidas que
permitam a validação e a contagem de cada voto, mesmo que as mídias ou urnas
sejam descartadas” —proposta que cheira demais à tese derrotada do voto
impresso.
Essa situação toda começou com o esforço de
Bolsonaro por cooptar militares para o governo e, ao mesmo tempo, promover a
descrença no sistema eleitoral. A campanha de Bolsonaro pôs bastante energia em
desacreditar as urnas ainda nas eleições de 2018, mesmo quase tendo vencido no
primeiro turno (Bolsonaro teve 46% dos votos). Na Universidade de São Paulo,
fizemos um levantamento das postagens bolsonaristas no Facebook nos 40 dias de
campanha do primeiro turno e identificamos 1,5 milhão de compartilhamentos de
postagens atacando as urnas.
Não é segredo que a estratégia é a mesma de
Donald Trump, que, também tendo vencido Hillary Clinton em 2016, alegou fraude.
Depois, em 2020, saiu da Casa Branca vociferando que as eleições haviam sido
roubadas. Trump incentivou a invasão do Congresso americano no dia da validação
do resultado e, soube-se depois, estudou mandar o Exército para apreender urnas
nos estados. Até hoje, um terço do eleitorado americano acredita que as
eleições de 2020 foram fraudadas. A tese conspiratória tem até nome: “A grande
mentira”.
Toda essa movimentação do TSE é para
impedir que o Brasil viva sua própria versão da grande mentira. A estratégia é
segurar os militares, esclarecendo dúvidas e os incorporando à própria dinâmica
do processo eleitoral, para que não possam se somar aos gritos de fraude que
vierem do lado de fora. A própria necessidade de segurar os militares para
impedir que sejam mobilizados pelas alegações fantasiosas do presidente mostra
quanto nossa democracia já está fragilizada.
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluir