sábado, 16 de abril de 2022

Gustavo Binenbojm*: A festa incompleta da liberdade

O Globo

Pessach — a Páscoa judaica — representa a forma viva mais antiga de celebração coletiva da liberdade. Há cerca de 3 mil anos, judeus espalhados pelo mundo contam a seus descendentes sobre a amargura da escravidão no Egito e sua longa travessia para a liberdade na Terra Prometida. Mesmo nas situações mais adversas, como em guerras, nos campos de concentração e durante pandemias, a comunidade judaica resistiu e cumpriu o mandamento bíblico de transmitir às crianças o testemunho de seus antepassados. A Última Ceia de Jesus, retratada por inúmeros artistas, revela detalhes da liturgia de Pessach, celebrado numa Jerusalém sob domínio romano, quase como um ato de subversão. Lembrar o passado era necessário porque a opressão se fazia novamente presente naquela época.

De certa forma, Pessach representa a incompletude da libertação da humanidade, como uma obra em construção. Se já sabemos como não ser racistas, estamos ainda aprendendo a ser antirracistas. Como disse lindamente o rabino Nilton Bonder: “Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravagista”. Não há como deixar de lembrar para que a história não se repita conosco, mas também para que ela deixe de se repetir com outros povos. Quem foi escravizado não pode jamais ser indiferente a pessoas escravizadas. Por isso, ao final de cada Pessach, a porta da casa deve ser aberta à espera daquele que ainda está por vir, daquele para quem a festa ainda não começou. Sua simbologia me parece clara: lembrar aqueles invisíveis aos nossos olhos.

Os maiores desafios da humanidade ainda são essencialmente éticos. A pandemia pôs uma lupa sobre essa realidade. A ciência fez seu papel, de forma expedita e a contento. Entendemos a doença e produzimos imunizantes eficazes em tempo recorde. A tecnologia possibilitou interações impensáveis, permitindo que o mundo e a economia girassem, mesmo em confinamento. Yuval Harari, em recente artigo, lembrou que a ciência tornou as pragas da natureza, como a Covid-19, um desafio gerenciável. Por que, então, tantas mortes e sofrimento evitáveis? Por causa de decisões políticas ruins. Não haverá avanço civilizatório sem uma reflexão ética sobre nosso destino comum, a partir de valores essenciais como democracia, liberdade e dignidade humana.

E por que é tão importante falar sobre isso, neste momento? Porque o mundo atravessa uma espécie de hiato obscurantista, em que as conquistas mais caras da civilização são postas em xeque. Patrocinar a aversão a minorias, o ódio ao diferente, o desprezo pelos vulneráveis apenas nos coloca em posição de aguardar pelo próximo encontro com novos opressores, pois esse é um ciclo incurável pela pura opressão. A democracia é tão sagrada e inegociável para o Estado de Israel como para os cidadãos judeus brasileiros em relação ao Brasil. Ser livre só é possível, por óbvio, onde exista um Estado Democrático de Direito. Quem desejar defender a ditadura, o autoritarismo e a barbárie, que o faça em nome próprio, sem invocar pertencimento comunitário. Defender a democracia, a liberdade e a dignidade humana, para os judeus, não é uma questão de escolha. É um imperativo de sua identidade.

Pessach é a ocasião em que os judeus celebram sua liberdade. Mas é também um momento especial para compartilharem com a humanidade seu legado ético, sua sabedoria milenar e, sobretudo, seu sentimento de incompletude enquanto o mundo não for um lugar de justiça e liberdade para todos.

*Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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