quinta-feira, 7 de abril de 2022

Maria Cristina Fernandes: Memórias do Cárcere

Valor Econômico

Munição para as milícias digitais bolsonaristas é o que Lula pode tirar de pior de suas memórias do cárcere

A inédita desistência dos indicados para a presidência da Petrobras e do conselho de administração é decorrência do último bastião dos costumes reformados a partir do mensalão até a Lava-Jato. Alguns caíram por exagerados, como a condução coercitiva, outros por desmoralizados, como o instituto da delação. Há ainda aqueles, como o foro privilegiado, que seguem convenientemente congelados.

Foi a reversão das mudanças na jurisprudência e nos costumes da política suscitadas pela escandalogia que azeitou a política nos últimos seis anos. Esta reversão, porém, esbarrou no muro erguido pela governança da Petrobras e pela Lei das Estatais. Quando a onda foi impedida de avançar para devolver à política o controle da maior empresa brasileira, o sistema travou.

Foi a esta trava que o presidente da Câmara, Arthur Lira, reagiu. Se quer vender a Petrobras é para fazer o bis da Eletrobras, cujo modelo de privatização resultou num retalhamento de interesses com prejuízo público e benefício privado. Na tramitação da medida provisória da Eletrobras, que transcorreu na Câmara sob o comando de Lira, há benesses que dependem da Petrobras para serem abrigadas.

A história é conhecida. Ao longo desses seis anos os partidos atingidos pela Lava-Jato operaram uma retomada das posições que detinham. Em vez de mesadas promíscuas, partiram para relações formalmente reconhecidas. Primeiro veio a impositividade crescente das emendas parlamentares e depois o aumento paulatino dos fundos eleitoral e partidário. E só agora partem para retomar a Petrobras.

O PL e o PP, não coincidentemente os partidos que lideraram o mensalão e a Lava-Jato, foram aqueles que operaram com mais eficiência - e de papel passado - o novo regime de comunhão de bens com o Executivo. Detêm, hoje, a primeira (75 deputados) e a segunda (59) bancadas da Câmara. Ante o novo mapa legislativo, Joaquim Barbosa, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal que comandou o julgamento do Mensalão, se depara com pergunta: afinal Valdemar Costa Neto, venceu?

Finalmente desfiliado do PSB, para que não pairem suspeitas de que acalenta planos na política eleitoral, Barbosa não tem dúvidas: “Sim, venceu. Ele e todos os políticos que têm por objetivo se apossar do Estado venceram e levaram a uma hipertrofia do Legislativo que agora querem consolidar com o nome de semipresidencialismo, com o agravante de que agora o sistema de freios e contrapesos já não funciona mais”.

A espantosa recuperação política de Valdemar Costa Neto deu-se às custas do Estado, graças ao comando de uma máquina partidária com franco e crescente acesso a recursos públicos. Há apenas seis anos foi beneficiado por indulto à sua pena de sete anos e 10 meses por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Vinte dias antes da extinção de sua pena, a signatária do indulto, a ex-presidente Dilma Rousseff, teve aberto contra si o processo de impeachment que resultaria na sua cassação.

A Lava-Jato derrubou Dilma e presenteou o Brasil com o presidente Jair Bolsonaro, que tratou de operar a destruição do sistema de controles de que fala Joaquim Barbosa. Basta ver, por derradeiro, a filiação de interesses dos seus indicados governamentais para as agências reguladoras. Em quatro anos, Bolsonaro terá feito uma rasante nos avanços institucionais dos mecanismos de controle do Estado alcançados em 23 anos pelos governos do PSDB (agências reguladoras), PT (autonomia do MPF e da PF) e MDB (governança da Petrobras).

Bolsonaro só não detonou a candidatura do ex-juiz lavajatista. Sergio Moro tropeçou em suas próprias pernas. Foi engolido pelo excesso de esperteza e pela ignorância sobre a natureza do conflito político que marcou sua passagem pelo Judiciário. As migrações da janela partidária mostraram que o condomínio presidencial avança sobre o que restou da terceira via e parte para encarar o favorito. As defesas, até o momento, estão desguarnecidas.

Foi isso que Lula mostrou na noite de quarta-feira ao abordar, em evento da Fundação Perseu Abramo, o aborto. O discurso não poderia ter sido mais sensato. Trata-se de um tema de saúde pública e assim deve ser encarado. A criminalização escancara a desigualdade porque restringe o direito a quem tem dinheiro para fazê-lo e torna o aborto inseguro uma das principais mortes de morte materna no país. Homens não têm moral para criticar porque não são eles que arcam com uma gravidez indesejada.

O tema avançou na Argentina e no Chile e até no Brasil onde o Datafolha atestou um recuo de 64%, em 2016, para 57% dos brasileiros que são favoráveis à criminalização do aborto. A redução é substantiva, mas ainda atesta a resistência da maioria. O perfil dos aderentes explica porque: quanto mais instruído, jovem, urbano e menos religioso, mas favorável o brasileiro é a que a decisão seja da mulher.

Lula revela tanta coragem para tocar no tema quanto ignorância sobre como funciona hoje a disseminação de notícias. Se avalia que é hora de mexer num vespeiro como o aborto, seria esperado que já tivesse à mão uma ação maciça de comunicação em redes sociais para dar sustentação ao seu discurso. Sem isso, será vítima das versões as mais diversas sobre o que falou sendo espraiadas pelas igrejas evangélicas.

Comportou-se, ainda de maneira exageradamente desabrida ao falar que vai tirar “oito mil militares” de cargos civis em Brasília, e sugerir que os sindicalistas protestem contra a precarização dos direitos trabalhistas na frente das casas dos parlamentares.

Lula sempre diz que foi aquele grupo de pessoas que se revezava para lhe dar bom dia e boa noite em frente à carceragem da Polícia Federal em Curitiba, entre as quais aquela que viria a ser sua mulher, que lhe ajudou a superar os 580 dias de prisão. O pré-candidato petista mostra mais uma vez desconhecimento sobre a máquina de reprodução dos “fatos alternativos” ao querer repaginar as células de mobilização. Sua fala já foi transformada em ameaça de invasão de propriedade privada. É o que resta ao bolsonarismo fazer para desviar o assunto do conjunto da obra deste governo - da tentativa de assalto à Petrobras à quermesse da corrupção no MEC.

A prisão deu a Lula condições de partilhar com milhões de brasileiros as angústias do confinamento da covid-19, tema cujo sumiço do debate público tem propiciado a recuperação de Bolsonaro nas pesquisas. Munição para as milícias digitais bolsonaristas é o que de pior Lula pode tirar de suas memórias do cárcere.

 

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