Valor Econômico
Munição para as milícias digitais
bolsonaristas é o que Lula pode tirar de pior de suas memórias do cárcere
A inédita desistência dos indicados para a
presidência da Petrobras e do conselho de administração é decorrência do último
bastião dos costumes reformados a partir do mensalão até a Lava-Jato. Alguns
caíram por exagerados, como a condução coercitiva, outros por desmoralizados,
como o instituto da delação. Há ainda aqueles, como o foro privilegiado, que
seguem convenientemente congelados.
Foi a reversão das mudanças na
jurisprudência e nos costumes da política suscitadas pela escandalogia que
azeitou a política nos últimos seis anos. Esta reversão, porém, esbarrou no
muro erguido pela governança da Petrobras e pela Lei das Estatais. Quando a
onda foi impedida de avançar para devolver à política o controle da maior
empresa brasileira, o sistema travou.
Foi a esta trava que o presidente da Câmara, Arthur Lira, reagiu. Se quer vender a Petrobras é para fazer o bis da Eletrobras, cujo modelo de privatização resultou num retalhamento de interesses com prejuízo público e benefício privado. Na tramitação da medida provisória da Eletrobras, que transcorreu na Câmara sob o comando de Lira, há benesses que dependem da Petrobras para serem abrigadas.
A história é conhecida. Ao longo desses
seis anos os partidos atingidos pela Lava-Jato operaram uma retomada das
posições que detinham. Em vez de mesadas promíscuas, partiram para relações
formalmente reconhecidas. Primeiro veio a impositividade crescente das emendas
parlamentares e depois o aumento paulatino dos fundos eleitoral e partidário. E
só agora partem para retomar a Petrobras.
O PL e o PP, não coincidentemente os
partidos que lideraram o mensalão e a Lava-Jato, foram aqueles que operaram com
mais eficiência - e de papel passado - o novo regime de comunhão de bens com o
Executivo. Detêm, hoje, a primeira (75 deputados) e a segunda (59) bancadas da
Câmara. Ante o novo mapa legislativo, Joaquim Barbosa, o ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal que comandou o julgamento do Mensalão, se depara com pergunta:
afinal Valdemar Costa Neto, venceu?
Finalmente desfiliado do PSB, para que não
pairem suspeitas de que acalenta planos na política eleitoral, Barbosa não tem
dúvidas: “Sim, venceu. Ele e todos os políticos que têm por objetivo se apossar
do Estado venceram e levaram a uma hipertrofia do Legislativo que agora querem
consolidar com o nome de semipresidencialismo, com o agravante de que agora o
sistema de freios e contrapesos já não funciona mais”.
A espantosa recuperação política de
Valdemar Costa Neto deu-se às custas do Estado, graças ao comando de uma
máquina partidária com franco e crescente acesso a recursos públicos. Há apenas
seis anos foi beneficiado por indulto à sua pena de sete anos e 10 meses por
corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Vinte dias antes da extinção de sua
pena, a signatária do indulto, a ex-presidente Dilma Rousseff, teve aberto
contra si o processo de impeachment que resultaria na sua cassação.
A Lava-Jato derrubou Dilma e presenteou o
Brasil com o presidente Jair Bolsonaro, que tratou de operar a destruição do
sistema de controles de que fala Joaquim Barbosa. Basta ver, por derradeiro, a
filiação de interesses dos seus indicados governamentais para as agências
reguladoras. Em quatro anos, Bolsonaro terá feito uma rasante nos avanços
institucionais dos mecanismos de controle do Estado alcançados em 23 anos pelos
governos do PSDB (agências reguladoras), PT (autonomia do MPF e da PF) e MDB
(governança da Petrobras).
Bolsonaro só não detonou a candidatura do
ex-juiz lavajatista. Sergio Moro tropeçou em suas próprias pernas. Foi engolido
pelo excesso de esperteza e pela ignorância sobre a natureza do conflito
político que marcou sua passagem pelo Judiciário. As migrações da janela
partidária mostraram que o condomínio presidencial avança sobre o que restou da
terceira via e parte para encarar o favorito. As defesas, até o momento, estão
desguarnecidas.
Foi isso que Lula mostrou na noite de
quarta-feira ao abordar, em evento da Fundação Perseu Abramo, o aborto. O
discurso não poderia ter sido mais sensato. Trata-se de um tema de saúde
pública e assim deve ser encarado. A criminalização escancara a desigualdade
porque restringe o direito a quem tem dinheiro para fazê-lo e torna o aborto
inseguro uma das principais mortes de morte materna no país. Homens não têm
moral para criticar porque não são eles que arcam com uma gravidez indesejada.
O tema avançou na Argentina e no Chile e
até no Brasil onde o Datafolha atestou um recuo de 64%, em 2016, para 57% dos
brasileiros que são favoráveis à criminalização do aborto. A redução é
substantiva, mas ainda atesta a resistência da maioria. O perfil dos aderentes
explica porque: quanto mais instruído, jovem, urbano e menos religioso, mas
favorável o brasileiro é a que a decisão seja da mulher.
Lula revela tanta coragem para tocar no
tema quanto ignorância sobre como funciona hoje a disseminação de notícias. Se
avalia que é hora de mexer num vespeiro como o aborto, seria esperado que já
tivesse à mão uma ação maciça de comunicação em redes sociais para dar
sustentação ao seu discurso. Sem isso, será vítima das versões as mais diversas
sobre o que falou sendo espraiadas pelas igrejas evangélicas.
Comportou-se, ainda de maneira
exageradamente desabrida ao falar que vai tirar “oito mil militares” de cargos
civis em Brasília, e sugerir que os sindicalistas protestem contra a
precarização dos direitos trabalhistas na frente das casas dos parlamentares.
Lula sempre diz que foi aquele grupo de
pessoas que se revezava para lhe dar bom dia e boa noite em frente à carceragem
da Polícia Federal em Curitiba, entre as quais aquela que viria a ser sua
mulher, que lhe ajudou a superar os 580 dias de prisão. O pré-candidato petista
mostra mais uma vez desconhecimento sobre a máquina de reprodução dos “fatos
alternativos” ao querer repaginar as células de mobilização. Sua fala já foi
transformada em ameaça de invasão de propriedade privada. É o que resta ao
bolsonarismo fazer para desviar o assunto do conjunto da obra deste governo -
da tentativa de assalto à Petrobras à quermesse da corrupção no MEC.
A prisão deu a Lula condições de partilhar
com milhões de brasileiros as angústias do confinamento da covid-19, tema cujo
sumiço do debate público tem propiciado a recuperação de Bolsonaro nas
pesquisas. Munição para as milícias digitais bolsonaristas é o que de pior Lula
pode tirar de suas memórias do cárcere.
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