segunda-feira, 11 de abril de 2022

Miguel de Almeida: Reeleição, herança maldita

O Globo

Quentin Tarantino chocou multidões ao interferir na história e executar Adolf Hitler em “Bastardos inglórios”. A narrativa vinha numa toada de cinebiografia, espionagem clássica, quando de repente o diretor praticou vingança catártica ao perpetrar um bem-sucedido (imaginário) atentado.

Pode-se dizer que não foi um assassinato, mas um justiçamento.

Causou estranheza. Mas, claro, mesmo em discordância com a linha histórica, difícil quem não tenha internamente sorrido ao ver o déspota crivado por balas.

A arte existe porque a vida não basta, dizia categoricamente Ferreira Gullar. A imaginação serve assim como um bálsamo ou um discreto regozijo diante da ingrata realidade.

Tratando-se da realidade política brasileira, chame-a pela alcunha correta —rematada tragédia, com lances de humor mórbido.

Ao olhar a História, não tão distante, apenas a republicana basta, se percebe como os capítulos são escritos com poucos avanços e funestos atrasos. O roteirista da “Comédia Brasil”, talvez por ser mal pago, oferece desfechos canhestros, inverossímeis em sua canastrice.

No passado recente se esconde a resposta à dúvida — em que momento começou a danação?

Até hoje se pergunta por que Fernando Henrique Cardoso, mesmo avisado por gente séria como Mário Covas, insistiu em bancar o instituto da reeleição. Ali talvez estivesse a salvação de um povo tão deixado à margem. FH não teria sido reeleito; idem Lula; e, principalmente, Dilma estaria condenada a não ser nada além de Rousseff — no caso, isso já é lucro. Imagine quantos dissabores sua ausência teria provocado no Bozo e em Eduardo Cunha.

Ambos, sem Dilma, são como um Bozo sem Lula, em 2018 —ou, 2022, um Lula sem Bozo: a morte da imaginação.

Covas insistia que o Brasil não tinha tradição — educação? —para suportar a reeleição. Você olha o passado e descobre quantos problemas não teriam ocorrido caso seu alerta fosse ouvido.

Com certeza, a audiência seria poupada de ter um presidente entusiasta da tortura e da ditadura e de um ex querendo esconder sob o colchão um desvio numa única empresa que ultrapassa R$ 6 bilhões só no dinheiro devolvido.

O arco brasileiro da História evidencia como o segundo mandato é quase sempre uma tragédia. Embora reeleito, FH viu seu governo reduzido a um quarto e sala; Lula se saiu melhor porque escondeu seu desarranjo econômico e passou o problema para a frente; Dilma, sem muitas delongas, engarrafou o vento.

O brasileiro vaia minuto de silêncio, mas tem o coração mole. Oswald de Andrade dizia que o Brasil é um país cheio de gente dando adeus. Daí se compreende a empatia com as tragédias e como elas por vezes santificam maus atores. Diante de um atoleiro de corrupção, Getúlio Vargas sacou o revólver e rapidamente passou de acusado a acusador. A brutalidade de seu suicídio, embora friamente pensado, transformou seus equívocos em qualidades e foi capaz de inaugurar estranhíssimo pensamento político. O trabalhismo possui a profundidade de clara de ovos.

No Brasil, a tragédia purifica. Serve para cozimento de ideias fora do lugar. Ao não criticar o instituto da reeleição, perdoaram-se os métodos de manutenção no poder — uso da máquina pública, mimos para setores organizados e a redução do discurso político, deixando de ser transformador para se tornar somente reacionário.

Logo nas primeiras páginas de “M — O homem da Providência”, de Antonio Scurati, “romance documental” sobre Benito Mussolini, há a descrição de sua área de trabalho. Neste momento, o déspota padece de terríveis dores abdominais e flatulências intermináveis, resultado de brutal prisão de ventre. O cheiro no recinto é pestilento, e seu mau hálito aterroriza os confrades.

Num dos cantos da sala, ao lado do genuflexório, se encontram centenas de santinhos presenteados pelas eleitoras carolas e igual quantidade de medalhas de bravura ofertadas pelos homens da guerra.

A oração a tudo perdoa —sugere o altar de Mussolini. Até o assassinato de seus inimigos políticos, a construção da mentira e a catequização pelo medo. As violentas milícias fascistas, a perseguição aos jornalistas e à oposição, a queima de arquivos —todas as atrocidades podem ser perdoadas porque se luta pela causa do bem.

No caso italiano, a conversão forçada se dava pela violência física, pela transformação do adversário em verdugo (“comunista!”) e pela redução do horizonte a um minguado futuro de ordem e progresso. Criava-se o caos para oferecer depois a bonança administrada.

A possibilidade de reeleição no Brasil, dada a má educação alertada por Covas, afunilou as visões de futuro, desestimulou o surgimento de novos quadros e reduziu qualquer pleito à consagração de platitudes. Escondem-se os problemas, e se algum ousado trouxer solução será execrado, desqualificado.

O Brasil, entorpecido pelas palavras de ordem, deixou de pensar e acostumou-se a ser comprado por isenções, bolsas, Refis, orçamentos secretos, auxílios, enfim, migalhas momentâneas.

Tanto se fez que o único ato de coragem é deixar de dar o dízimo ao pastor (do MEC).

 

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