sábado, 16 de abril de 2022

Pablo Ortellado: Demissões voluntárias em alta

O Globo

Numa entrevista para a agência Bloomberg, em maio de 2021, o professor de gestão Anthony Klotz profetizou que os Estados Unidos assistiriam a uma “grande recusa”, uma onda de demissões voluntárias em massa causadas por epifanias dos trabalhadores provocadas pela pandemia: sobre o tempo que passam com a família, o tempo gasto com transporte e o sentido do trabalho.

Logo depois, dados sobre demissões voluntárias começaram a mostrar o tamanho da grande recusa: nos Estados Unidos, elas saltaram de cerca de 3 milhões por mês no período pré-pandemia para 4,5 milhões em novembro de 2021. O fenômeno foi também detectado na Europa e na China, e um levantamento recente mostra seu impacto no Brasil. Afinal, por que os trabalhadores estão voluntariamente abandonando seus empregos?

Segundo levantamento da Lagom Data, com dados do Caged (Ministério do Trabalho e Previdência), as demissões voluntárias dispararam no Brasil a partir de setembro de 2021. Enquanto, no período pré-pandemia, oscilavam abaixo da faixa das 300 mil por mês, desde outubro de 2021 passam de 400 mil e chegaram a 560 mil em janeiro de 2022.

Há algumas explicações iniciais para o fenômeno. Parte do incremento pode ter sido causada pelas demissões voluntárias já planejadas que a pandemia terminou represando. Outra parte por movimentos rumo à aposentadoria apressados pela pandemia.

Mas essas explicações são insuficientes. Não vimos apenas um salto brusco quando a pandemia arrefeceu, mas um aumento contínuo, que parece sugerir um patamar mais alto de demissões voluntárias mensais. Além disso, elas não estão concentradas nos trabalhadores mais velhos, mas nos mais jovens, sobretudo com menos de 30 anos.

O tamanho do incremento —no Brasil quase dobraram as demissões voluntárias mensais —exige explicações de outro tipo. Muitos analistas —inclusive Klotz —chamam a atenção para os impactos das mudanças do trabalho na pandemia. Uma parcela dos empregados no setor de serviços migrou para o trabalho remoto, em casa. Isso permitiu um contato mais próximo com a família e poupou o tempo gasto com deslocamento entre a casa e o escritório.

Uma pesquisa do IBGE em 2019 estimou em uma hora o tempo médio de deslocamento entre casa e trabalho no Brasil (em São Paulo e no Rio de Janeiro, uma hora e meia). O tempo antes perdido em engarrafamentos, ônibus e trens lotados, com o trabalho remoto passou a poder ser ganho no convívio com a família.

Há ainda outros fatores. As políticas de distanciamento social na pandemia impediram gastos com shows, restaurantes e viagens. Durante muitos meses, os trabalhadores ficaram sem esses “luxos” e descobriram que podiam viver muito bem de forma mais barata e simples.

Regras excepcionais adotadas durante a pandemia reduziram a jornada de trabalho. A mudança permitiu mais interação com a família, mais tempo de lazer e mais espaço para desenvolver projetos pessoais e hobbies. Para os mais velhos, que tinham vínculos mais fortes com o trabalho e a empresa, isso parece ter tido pouco efeito; mas, entre os jovens, parece ter posto em xeque o próprio sentido do trabalho nas organizações.

É um pouco surpreendente que a grande recusa tenha tido tanto impacto no Brasil, já que se podia esperar que a pobreza funcionasse como barreira para o questionamento do trabalho, empurrando os trabalhadores a aceitar empregos ruins para garantir a sobrevivência. Os dados do Caged olham apenas para o emprego formal, deixando de lado a metade da força de trabalho no mercado informal —onde o fenômeno pode ser menos marcante ou mesmo inexistente. Mas, quando se olha para onde se concentram as demissões voluntárias, elas são proporcionalmente mais frequentes em ocupações mal remuneradas e pouco qualificadas, como operador de telemarketing, auxiliar de logística e atendente de lanchonete.

Não há indícios de que quem sai do emprego esteja parando de trabalhar. Tudo indica que busca melhores formas de ganhar a vida. A grande recusa sugere, assim, uma reflexão sobre o sentido do trabalho.

Será que deveríamos trabalhar tanto, em empregos sem sentido, gastando tempo demais no trânsito, sacrificando o convívio com a família e os amigos, apenas para poder comprar algumas bugigangas a mais? Talvez a recusa dos trabalhadores jovens do setor de serviços tenha algo a nos dizer. 

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