O Globo
‘Seria
uma falência moral, que a História condenaria.’ O ministro do Exterior
ucraniano, Dmytro Kuleba, referia-se à hipótese de rejeição da candidatura de
seu país ao ingresso na União Europeia (UE). Seus alvos implícitos eram o
presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz,
núcleos da resistência à pretensão da Ucrânia. Kuleba tem razão — e interpreta
melhor a história da UE que os governantes das duas nações líderes do projeto
europeu.
Segundo Macron, “todos nós sabemos que o
processo de adesão da Ucrânia exigiria vários anos, provavelmente várias
décadas”. Scholz seguiu a mesma linha ao declarar que a Ucrânia não pode se
beneficiar de “um atalho”. Os argumentos franceses e alemães embutem uma visão
econômico-burocrática sobre a integração europeia.
Scholz apontou a “injustiça” de acelerar o
ingresso ucraniano à frente das candidaturas de seis países balcânicos. Para
Macron, o “atalho” ucraniano implicaria “reduzir os padrões de acesso” e
“repensar a unidade da Europa”.
— Podemos abrir procedimento de acesso para
um país em guerra? — indagou o francês, oferecendo sua resposta:
— Acho que não.
Dessa posição, improvisou a proposta de criar uma “Comunidade Política Europeia”, algo como um pátio de espera destinado a candidato como a própria Ucrânia, os países dos Bálcãs ocidentais, a Moldávia e a Geórgia.
A UE é uma comunidade política e um mercado
comum, organizados sobre o núcleo de uma união monetária. Mas o conceito que a
originou se situa na esfera política e estratégica. Seu berço, a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço (Ceca) derivou do imperativo de soldar os destinos
da Alemanha e da França, para diluir as rivalidades nacionalistas que
provocaram as duas grandes guerras e erguer uma barreira democrática à URSS. O
projeto europeu surgiu como reação aos espectros de Hitler e Stálin.
O segundo grande ato histórico foi a União
Monetária, decidida na hora da reunificação alemã. “A Alemanha inteira para
Helmut Kohl; metade do marco alemão para François Miterrand” — o diagnóstico irônico
sintetizou o intercâmbio franco-alemão que originou o euro. Tratava-se de, pelo
laço matrimonial da unidade monetária, assegurar que a Alemanha reunificada
seria uma “Alemanha europeia”, renunciando para sempre à aventura de erguer uma
“Europa alemã”.
O terceiro ato veio com a abertura das
portas às nações do antigo bloco soviético. Desde 2004, em menos de uma década,
11 países inscritos no espaço soviético da Guerra Fria tornaram-se integrantes
plenos da UE. Os “padrões de acesso” foram rebaixados a fim de oferecer à
“outra Europa” uma via para a consolidação da democracia.
Europa sempre foi um projeto fincado no
alicerce da política. O comércio, os fluxos de capitais, a moeda funcionaram
exclusivamente como ferramentas para um fim estratégico. “Podemos abrir acesso
a um país em guerra?” A resposta apropriada, no caso ucraniano, é um inequívoco
“sim” — e precisamente por causa da natureza desta guerra. A longa espera dos
candidatos dos Bálcãs reflete o estado normal das coisas. O “atalho” ucraniano deveria
refletir a urgência de proteger a ordem internacional.
Zelensky, o presidente da Ucrânia, repete
que, na resistência à invasão russa, sua nação funciona como posto avançado da
Europa. Ele tem razão: um triunfo russo colocaria os Estados Bálticos, integrantes
da UE, na alça de mira de Putin. Mas há uma paisagem maior: o sistema de regras
que emergiu da tragédia nazista. A absorção da Ucrânia a um “espaço
pós-soviético” anunciaria a derrocada do tabu que cerca as guerras de anexação
territorial.
A Ucrânia, efetivamente, intercambiou a
pretensão de ingressar na Otan pelo sucesso de uma candidatura-relâmpago à UE.
A aceitação da candidatura ucraniana fortaleceria o moral das tropas,
reafirmaria a unidade ocidental contra a agressão russa e, por isso, abreviaria
o intervalo para uma negociação de paz. Logo mais, a UE tomará sua decisão mais
importante desde, pelo menos, a União Monetária. Será uma escolha entre a
fidelidade a sua vocação histórica e a “falência moral”.
A guerra já devia é ter acabado,aliás,nem devia ter começado.
ResponderExcluirDM, sempre tentando moldar a realidade às suas crenças...
ResponderExcluir