O Globo
Maya Angelou sabia das coisas. Sabia o que
fazer com a própria vida — tanto que morreu oito anos atrás como a mais
celebrada poeta e escritora negra dos Estados Unidos. “Eu sei por que o pássaro
canta na gaiola” e “A vida não me assusta” são apenas alguns de mais de 30 títulos
que compõem sua obra. Ainda no início de 2022, Angelou se tornou a primeira
mulher negra cuja efígie é estampada numa moeda americana (o popular quarter de 25 centavos de
dólar). Recebeu essa última honraria não só pelo que escreveu, mas pela
tenacidade com que escolheu combater a discriminação racial ao longo de sua
vida cívica. Criança, conhecera na carne o elenco de medos e misérias
decorrentes do racismo. Jovem e adulta, lutou lado a lado de Malcolm X, o líder
ativista assassinado em 1965, marchou de braço cerrado com Martin Luther King e
seguiu marchando junto aos que lhe sucederam. Madura, concluiu:
— Aprendi que as pessoas esquecem o que você disse, esquecem o que você fez, mas jamais haverão de esquecer o que você as fez sentir.
Wallison de Jesus é sobrinho de Genivaldo
de Jesus Santos, o sergipano de 38 anos abordado pela Polícia Rodoviária
Federal (PRF) numa estrada enlameada de Umbaúba. À luz do meio-dia, Wallison
viu o tio levantar a camisa e erguer os braços, mostrando aos agentes não estar
armado. Trazia consigo apenas os medicamentos para esquizofrenia que lhe
permitiam viver em paz. Viu o tio ser derrubado à força, debater-se, ser
imobilizado, amarrado e socado no camburão. Com a cabeça, o tronco e parte das
pernas do tio enfiados na viatura, o sobrinho ainda viu que os pés e as canelas
finas de Genivaldo impediam o fechamento da porta. Por fim, viu os agentes
jogarem spray de pimenta e gás lacrimogêneo no interior do camburão. Lufadas de
nuvens tóxicas puderam escapar pelas frestas do porta-malas. Genivaldo, não.
Morreu de asfixia ali dentro.
O Brasil inteiro tornou-se testemunha desse
crime hediondo graças aos vídeos feitos por moradores de Umbaúba, que a tudo
assistiram em agonia, desespero, horror. E resignação diante de um poder sem
freios. Como exigir que interviessem, que impedissem? Um dia antes, uma
operação deflagrada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), da
Polícia Militar do Rio, em conjunto com a PRF, havia deixado um rastro de pelo
menos 23 cadáveres na Vila Cruzeiro, favela da Zona Norte da capital
fluminense. Os relatos de execuções, torturas, tiros de fuzil no rosto dessa
chacina cega por parte do Estado do Rio talvez já tivessem chegado a Umbaúba
quando o tio de Wallison foi abordado. Como então não ter medo sendo apenas um
cidadão civil e negro?
Vale lembrar que Genivaldo foi abordado e
morto por dirigir moto sem capacete perto de sua casa. Alguma vez algum agente
da PRF ou de outra unidade policial cogitou abordar o presidente da República
pelas infrações que gosta de cometer país afora, em terra ou mar? Ou um único
integrante de suas motociatas? A pergunta é simplória. Mas a brutalidade
policial brasileira também é.
A jornalista Jeniffer Mendonça, do site
Ponte Jornalismo, teve acesso ao primeiríssimo boletim de ocorrência registrado
na Polícia Civil de Umbaúba sobre a morte do sergipano. O documento é aterrador
pelo que deixou de dizer e fazer. Os quatro policiais envolvidos nem precisaram
prestar depoimento ao delegado Gustavo Mendes Ribeiro — foram ouvidos
“informalmente” e, portanto, não estão citados nominalmente. A ocorrência,
registrada como “morte a esclarecer, sem indício de crime”, fala em “crime de
resistência” por parte de Genivaldo, “desobediência às ordens” e necessidade de
“algemação para resguardar a integridade física dos policiais envolvidos”.
Outro documento, um boletim interno da PRF divulgado pelo Intercept Brasil, com
o depoimento e a identidade dos quatro agentes, atribui a morte do abordado a
“uma fatalidade desvinculada da ação policial legítima” e “mal súbito”.
O Brasil está reduzido a picos de
indignação, em intervalos cada vez menores. Está difícil respirar diante da
sucessão de barbáries nacionais. Mas proclamar indignação a peito aberto, mesmo
com sinceridade e arrojo, é fácil, quase uma desculpa. Difícil e trabalhoso é o
caminho do combate diário por algum sentido coletivo de humanidade no Brasil
bolsonarizado. Sem jamais esquecer o que este governo e seus acólitos nos fazem
sentir.
Os quatro policiais agiram como monstros,eu nem vi o vídeo,não tenho saúde pra ver esse tipo de coisa.
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