Folha de S. Paulo
Condenar um enquanto se ganha quantias
superiores é uma grande hipocrisia
Todos as estrelas do sertanejo —e não só
elas— devem estar secretamente furiosas com o cantor Zé Neto (da dupla Zé Neto
& Cristiano) por ter, numa
fala completamente gratuita durante um show, desmerecido artistas que captam
recursos via Lei Rouanet (como se fossem menos dignos do que ele) e
ainda, a cereja do bolo, feito uma indireta contra Anitta por ter, como todo
mundo sabe, feito tatuagem em uma parte bem íntima do corpo.
Em pouco tempo, começaram
as investigações. O mesmo artista que desmerece a Lei Rouanet ganha cachês
de centenas de milhares de Reais de municípios espalhados pelo país. Se isso
não é mamata, o que é?
Outro sertanejo de direita, Sergio Reis, se saiu com esse malabarismo: quando a prefeitura gasta para contratar um show "é dinheiro para o público, não é dinheiro público". Então o mesmo vale para o dinheiro captado por Lei Rouanet! Ele também retorna ao público.
Até existe uma diferença entre Lei Rouanet
e gasto público direto, mas no sentido oposto ao apontado por Sergio Reis. A
diferença é que, para captar pela Lei Rouanet, o artista tem que fazer projeto,
passar por diversos crivos técnicos e prestar contas de cada gasto feito. Além
disso, o valor do cachê é limitado. Já o contrato fechado com o município
é dinheiro
fácil, sem limite legal e sem ter que prestar contas para ninguém.
Ambos são legítimos. Mas um mínimo podemos
dizer: condenar o uso da Lei Rouanet ao mesmo tempo em que se ganha quantias
muito superiores de dinheiro público sem nenhum tipo de controle e auditoria é
uma grande hipocrisia.
Ademais, há uma prática estabelecida no
Brasil de se cobrar acima do preço de mercado quando o cliente é o setor
público. Cidades pequenas pagando altas somas por shows de grandes estrelas
—que trazem um brilho momentâneo mas não deixam nada para o longo prazo— nos
faz no mínimo questionar as prioridades do país.
A tentação de politizar tudo isso é muito
forte. Afinal, a fala original de Zé Neto era basicamente um discurso político,
repisando clichês da direita bolsonarista. É apenas por isso que Lei Rouanet é
demonizada e o cachê estatal não.
O alvo da vez, além dele, tem sido o cantor
Gusttavo Lima, que tem os cachês mais altos. E
ele ser notoriamente bolsonarista não ajuda (embora não me consta que
jamais tenha falado mal da Lei Rouanet).
Mas não deixe a sua paixão política colorir
seu julgamento sobre esses artistas. Na ausência de maiores provas, é injusto
atribuir a eles as possíveis irregularidades das prefeituras que contratam seus
shows.
Eles estão fazendo seu trabalho, valem
muito mesmo e não se espera que investiguem longamente as contas de cada
município que se interessa por um show seu. Anitta também está na lista dos
maiores cachês de prefeituras. Ou seja, a prática não tem lado político.
Aliás, embora a indústria do sertanejo seja
ligada ao agro, enquanto gênero ele tem sido bem independente. Enquanto no
country americano há presença marcante de patriotismo, família, trabalho e
valores "conservadores" nas músicas, o sertanejo brasileiro segue
fiel à sua trajetória: paixão, juras de amor eterno, términos amargos, bebedeira,
desespero, abandono, humilhação e, claro, muita traição.
Por mais que um moralismo persecutório
domine os púlpitos e os discursos, a vida brasileira ainda transcorre entregue
às paixões, completamente desregrada, e é isso que nossa música reflete. Uma
pena que o discurso entre as músicas seja tão maniqueísta.
Saudade do tempo que dupla sertaneja só cantava em circo sem lona,rs.
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