segunda-feira, 2 de maio de 2022

Marcello Serpa: O vírus e o mundo corporativo

O Globo

Depois de dois anos de pandemia, trabalho remoto e escritórios vazios, não parece coincidência duas séries excelentes retratarem o lado surreal do mundo corporativo.

“Severance”, criada por Dan Erickson e produzida por Ben Stiller, é uma obra-prima distópica tão estranha quanto imperdível. Uma empresa fictícia, Lumon, cria uma tecnologia que permite ao funcionário separar a vida particular do trabalho, literalmente. Um chip implantado na cabeça dos funcionários divide a consciência em duas, eles não lembram nada da vida pessoal enquanto no escritório e, quando fora, não recordam o que aconteceu no trabalho.

Os personagens principais são quatro funcionários trabalhando em cubículos apertados no centro de uma enorme sala vazia. Passam o dia digitando números sem sentido, falando abobrinhas sobre a vida do escritório, ganhando incentivos inúteis ao superar metas invisíveis, supervisionados por um chefe de sorriso branco e frio como uma lâmpada fluorescente numa mistura de terror com a mais fina ironia.

“WeCrashed”, com Jared Leto e Anne Hathaway, conta a história real de Adam Neumann e da criação da WeWork, a bilionária startup que aluga salas e escritórios para outras startups, surfando na onda da economia compartilhada. Os sócios e seus funcionários passam o dia venerando a divindade suprema do mundo digital: o unicórnio e os bilhões que ele simboliza. Depois de um início avassalador, Neumann termina soterrado pela própria megalomania ao ser expulso pelos investidores da empresa que fundou. Ele e sua mulher, Rebekah, uma espécie de guru da banalidade, transformam clichês de autoajuda em missão corporativa: “Nosso objetivo é elevar a consciência mundial”; “faça o que ama, e ganhe o jogo da vida”.

Ambas as séries são retratos caricatos de um tipo de cultura corporativa onde as empresas se confundem com cultos. Os acionistas como sacerdotes, os funcionários como fiéis.

As citações dos fundadores da Lumon em “Severance” soam como escrituras de uma seita oculta, enquanto em “WeCrashed” os funcionários da WeWork se fantasiam dançando música eletrônica por alguns minutos durante o dia, para logo depois voltarem ao trabalho. Irreverência e alegria são o DNA da companhia, desde que seja no horário marcado.

A WeWork é apenas uma das empresas de tecnologia que adotaram o conceito de trabalho total. Em nome da produtividade, criaram espaços onde os limites da vida pessoal e do trabalho se confundem: restaurantes, lavanderia, creche, academia, salas de vídeo games, cafés, bares, quartos para dormir depois de uma jornada longa, tudo em troca da dedicação total à empresa e de que os funcionários abracem os objetivos dos acionistas como se fossem os deles.

Um dos efeitos da pandemia foi expor quanto de “cocô de touro”, expressão americana para papo furado, existe no mundo corporativo. Missões e visões genéricas com propósitos e valores tão parecidos que poderiam ser usados por qualquer empresa de qualquer segmento soam vazias num mundo pós-Covid, onde os compromissos reais com a qualidade de vida dos consumidores e funcionários é o que realmente importa.

Quem teve o privilégio de poder trabalhar remotamente percebeu ser possível ter uma vida produtiva fora de um escritório tão moderno quanto estéril, com iluminação hospitalar, centenas de mesas idênticas, muito vidro e nenhuma janela. Qual o sentido das horas perdidas no trânsito, em ônibus e metrôs apertados, do guarda-roupa sisudo de trabalho, do almoço rápido de qualidade discutível e das reuniões intermináveis? A presença física de todos os funcionários nos escritórios das 9 às 5 se tornou irrelevante como medida de eficiência e produtividade. Está na hora de o como, o quando e o onde trabalhar deixarem de ser definidos apenas pelo andar de cima.

Quem sabe o vírus seja responsável por uma mudança na consciência coletiva sobre o significado, o valor e a qualidade do trabalho. Longe das baboseiras corporativas que “Severance” e “WeCrashed” escracham tão bem, as empresas terão de aprender a respeitar individualidades, flexibilizando horários, regras e códigos. Será como abrir todas as janelas renovando o ar viciado dos escritórios, o que depois de uma pandemia faz todo o sentido.

 

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