sábado, 7 de maio de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

É preciso reagir aos crimes de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Ao atacar o processo eleitoral e envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação das urnas, Bolsonaro incorre na prática de crimes. Congresso e PGR têm de agir

O Congresso e a Procuradoria-Geral da República (PGR) têm o dever de reagir às ameaças e agressões que Jair Bolsonaro vem cometendo contra a Constituição, a legislação eleitoral e a Lei 1.079/1950 (Lei do Impeachment). Não podem ficar passivos perante tão insistente violência do presidente da República contra a ordem jurídica e o regime democrático.

No dia 5 de maio, Jair Bolsonaro anunciou que as Forças Armadas vão realizar uma tarefa inteiramente estranha às suas competências constitucionais. “As Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadoras do mesmo”, disse Bolsonaro.

Com tal anúncio, verdadeira ameaça contra o processo eleitoral, o presidente da República violou a Constituição que jurou defender. As Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, diz a Constituição. Não é papel dos militares tutelar eleições.

Entre os crimes de responsabilidade, a Lei 1.079/1950 inclui “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina”. De forma evidente e continuada, o que Jair Bolsonaro tem feito é incitar a que Marinha, Exército e Aeronáutica se sintam autorizados a agir fora de suas competências constitucionais. Ao contrário do que disse Bolsonaro, as Forças Armadas são rigorosamente espectadoras do processo eleitoral. É assim que funciona num regime democrático.

Meses atrás, Jair Bolsonaro incitou o Congresso a colocar-se contra o processo eleitoral. Felizmente, o Legislativo foi prudente e rejeitou as propostas do Palácio do Planalto. Em vez de proporcionar maior segurança e confiabilidade, o projeto do voto impresso introduzia fragilidades no sistema, suscitando situações para novas e velhas fraudes. Era descarada tentativa de impor o retrocesso num processo eleitoral que funciona muito bem, de forma rápida, segura e confiável. Na ocasião, Jair Bolsonaro prometeu acatar a decisão do Congresso. Não apenas não cumpriu sua promessa, como tenta agora envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação do processo eleitoral.

Infelizmente, a incitação de Jair Bolsonaro para que as Forças Armadas atuem fora de suas competências não é um perigo abstrato ou distante. Por exemplo, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, sentiu-se no direito de pedir ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a divulgação de propostas das Forças Armadas sobre o processo eleitoral. O ofício do ministro da Defesa é um total disparate, a revelar incompreensão sobre o funcionamento de um Estado Democrático de Direito.

O convite para que as Forças Armadas participassem, em função consultiva, sem nenhum poder decisório, da Comissão Externa de Transparência da Justiça Eleitoral não autoriza o ministro da Defesa a exercer pressão pública sobre o TSE, opinando sobre o que a Corte deveria dar publicidade. Cabe ao TSE ser muito firme na defesa de suas prerrogativas constitucionais, sem transigir com esse tipo de pressão, que, de uma só vez, agride a independência do Judiciário e extrapola as competências das Forças Armadas.

Como se não bastasse, Jair Bolsonaro anunciou que seu partido, o PL, vai contratar uma empresa para auditar as eleições. A legislação eleitoral prevê essa possibilidade, mas não é bem isso o que Bolsonaro quer. Ele deseja criar atrito com a Justiça Eleitoral e desconfiança nas urnas. Já até anunciou a pretensa jogada: “Ela (a empresa) pode falar ‘aqui é impossível auditar’ e não fazer o trabalho. Olha a que ponto vamos chegar”, disse. Com essa conduta, Jair Bolsonaro incorre noutro crime de responsabilidade, previsto no art. 7.º da Lei 1.079/1950: “Utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral”.

O País tem, portanto, lei para punir Jair Bolsonaro pelo que está fazendo. Cabe ao Congresso e à PGR torná-la efetiva. Não é tempo de covardia. Ao permitirem que o presidente da República perturbe as eleições, como há tempos está fazendo, as instituições a quem caberia impedi-lo prejudicam a si mesmas. Afinal, no regime sonhado por Bolsonaro, o Congresso, o Ministério Público e outras expressões do poder soberano do povo não têm nenhuma serventia. 

Liberdade ainda que tardia no saneamento

O Estado de S. Paulo

Por décadas grupos de interesse obliteraram a modernização do setor. O País não pode poupar esforços para quitar essa dívida histórica e pôr fim à sua maior tragédia humanitária

O saneamento é a expressão mais brutal do atraso e da desigualdade no Brasil e, ao mesmo tempo, da ineficiência de um Estado obeso e aferrado a privilégios corporativos.

Os números são bem conhecidos e persistentes: quase metade da população não tem acesso a esgoto; 35 milhões de pessoas não têm água potável; mais da metade do esgoto não é tratada.

É uma catástrofe moral, social, ambiental e econômica. Estima-se que diariamente mais de 40 pessoas morrem e quase 1.000 são internadas por doenças ligadas à falta de saneamento, como diarreia ou febre tifoide. Quase 40% de toda a água encanada é desperdiçada e todos os dias são despejadas 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto nas águas brasileiras. Especialistas calculam que cada real investido em saneamento gere um retorno de até R$ 4 por meio da geração de empregos, produtividade do trabalho, valorização imobiliária, turismo ou economias com saúde.

Na última década, os investimentos não chegaram à metade dos R$ 25 bilhões anuais estabelecidos no Plano Nacional de Saneamento para atingir as metas de universalização: água potável para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90% até 2033. Para piorar, os investimentos vinham caindo e o cálculo parece defasado: especialistas apontam a necessidade de investir entre R$ 30 bilhões e R$ 60 bilhões ao ano.

A Constituição previu que os serviços públicos fossem precedidos de licitação e proibiu tratamentos privilegiados às estatais. No entanto, mais de 30 anos depois, ao contrário de áreas como energia, transporte ou telecomunicações, as companhias estaduais continuavam monopolizando o mercado. As parcerias público-privadas, mesmo atendendo apenas 6% dos municípios, respondem por 20% dos investimentos.

O Marco do Saneamento de 2020 desmantelou essa máquina do atraso. Ao centralizar na Agência Nacional de Águas (ANA) a regulação dos serviços, permitir a regionalização do saneamento por meio da montagem de blocos intermunicipais e, sobretudo, obrigar a licitação dos contratos, o Marco garantiu a segurança jurídica e a competitividade aptas a atrair investimentos e gerar eficiência.

Associações do setor estimam que os investimentos devem crescer em média 4,1 vezes. Os primeiros leilões foram marcados por forte concorrência e altos ágios, chegando a elevar os investimentos em 15%. Ao abrir o mercado à iniciativa privada, o Marco ainda possibilita ao Poder Público focar esforços onde eles são indispensáveis para amparar os municípios mais precários com subsídios estruturais e financeiros.

O Marco criou as condições para uma verdadeira revolução subterrânea. Mas não sem resistência. Um dia antes de sua sanção, 16 governadores solicitaram à presidência que fosse mantida a possibilidade de renovação dos contratos das estatais por 30 anos sem licitação. Em torpe desserviço às suas populações, muitos desses governantes e associações corporativas ainda tentaram barrar a licitação na Justiça. A maioria está nas Regiões Norte e Nordeste, onde, não por acaso, só 12% e 28% da população, respectivamente, conta com coleta de esgoto.

O levantamento divulgado pela ANA da capacidade econômico-financeira das prestadoras de serviço é mais uma prova da importância do Marco e do ônus do atraso na sua aprovação.

Em mais da metade dos municípios, sobretudo no Norte e Nordeste, as prestadoras não comprovaram capacidade para a universalização. Pela lei, seus contratos devem ser cassados e as operações devem ser licitadas, com a participação da iniciativa privada. Cabe aos órgãos reguladores subnacionais e aos municípios conduzir os processos de caducidade.

Não se deve subestimar as forças do atraso. As criaturas do esgoto político conseguiram postergar por décadas a extinção dos privilégios que mantêm dezenas de milhões de brasileiros soterrados na degradação. A sociedade e seus representantes eleitos precisam se municiar para cobrar sem trégua a relicitação pelas autoridades locais e, em caso de omissão, a atuação do Ministério Público. É um imperativo moral, social, econômico e ambiental. 

A gasolina no picadeiro

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro sabe por que combustível está caro, mas, por eleição, berra em defesa do consumidor e na crítica à Petrobras

Mais do que em peça de teatro, o presidente Jair Bolsonaro transformou em enredo de picadeiro eleitoral os dramas em que seu desgoverno fez o País mergulhar. Dia sim e outro também, às vezes aos berros, Bolsonaro aponta seu dedo em muitas direções para mostrar quais são, na sua interpretação intencionalmente equivocada, os responsáveis por situações que ele próprio criou, ajudou a criar ou nada faz para superar.

Deliberadamente desvirtuando o mundo real, tenta reverter a rejeição popular que coloca em sério risco sua reeleição. Seu tema preferido tem sido a gasolina, cujo preço tem peso relevante na inflação persistente que prejudica as pretensões eleitorais de um presidente que só está preocupado em se manter no cargo.

Em sua live semanal das quintas-feiras, Bolsonaro atacou duramente a Petrobras pouco antes de a empresa anunciar seus resultados no primeiro trimestre, resumidos no lucro recorde de R$ 44,5 bilhões. Disse que lucros dessa grandeza são “um crime inadmissível”, “um estupro”. Acrescentou que, “se tiver mais um aumento (dos combustíveis), pode quebrar o Brasil, e o pessoal da Petrobras não entende ou não quer entender”.

De sua parte, Bolsonaro entende a política de preços da Petrobras, como disse ao Estadão o presidente da empresa, José Mauro Ferreira Coelho. Por isso, ao investir contra a empresa e sua forma de definir os preços de seus produtos, o presidente da República apenas utiliza o problema como tema do palanque que montou no circo em que pretende transformar o País. É tudo encenação eleitoreira.

Preços altos do petróleo e, por consequência, de seus derivados, bem como uma certa desordem na economia mundial, decorrem de fatos extraordinários, entre os quais a guerra na Ucrânia e o lockdown em grandes cidades da China para tentar reduzir os casos de contaminação pela covid-19. Impactos igualmente extraordinários decorrem desses fatos. A inflação se acelerou de maneira notável em todo o mundo, com especial destaque para o caso brasileiro. Crescem as previsões de que o País terá inflação de dois dígitos pelo segundo ano consecutivo, fato não registrado desde o início do Plano Real, em 1994.

É nesse ambiente de fatos fora do normal que a Petrobras registrou lucro extraordinário nos três primeiros meses de 2022, que foi 3.718% maior do que o de um ano antes. Alta do petróleo no mercado internacional, aumento do volume e do valor exportado, redução de custos com a importação de gás natural liquefeito, aumento das margens na venda de óleo diesel são alguns dos fatores que explicam esse resultado excepcional. Não há como identificar neles intenção criminosa ou insensibilidade gerencial da direção da empresa.

Ganham os acionistas e o País com a gestão profissional da Petrobras, resistente a pressões políticas que prejudicaram a empresa em governos anteriores. Nos três primeiros meses do ano, a empresa pagou R$ 70 bilhões em impostos, royalties e participações governamentais. Aos acionistas, o maior dos quais é o governo, pagará R$ 48,5 bilhões em dividendos.

Preocupa a atitude de militares diante do sistema eleitoral

O Globo

Tem sido, na leitura generosa, decepcionante — ou, na pessimista, preocupante — a atitude de alguns representantes das Forças Armadas diante da eleição que se avizinha. É o caso dos últimos movimentos do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, que traduzem uma aproximação perigosa da instituição essencial da República que ele representa com teses conspiratórias absurdas sobre as urnas eletrônicas e a articulação política de evidente cunho golpista promovida pelo presidente Jair Bolsonaro.

É verdade que Nogueira estava certo ao contestar a frase infeliz do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), insinuando que as Forças Armadas tivessem sido “orientadas a atacar o processo eleitoral”. Desde então, porém, suas palavras e atos parecem dar razão à insinuação.

Ele foi com Bolsonaro a uma reunião do Alto-Comando do Exército, de modo a sugerir proximidade entre o presidente e a cúpula militar. Em seguida, encontrou-se com o presidente do STF, Luiz Fux, na tentativa aparente de apaziguar os ânimos institucionais. Depois, enquanto o STF celebrou o encontro como um compromisso em defesa da democracia, o Ministério da Defesa emitiu uma nota tíbia.

O texto preza o “respeito entre as instituições”, fala na “colaboração das Forças Armadas para o processo eleitoral”, mas, numa frase dúbia, reafirma “o permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de suas missões constitucionais”. Que missões? A dúvida fica no ar. Em nenhum momento a nota usa a palavra-chave capaz de saná-la: democracia.

Nogueira também enviou ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a divulgação do questionamento do representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE). Ora, o TSE já divulgou relatório com respostas às sugestões dos integrantes da CTE, não apenas o militar. O pedido não é apenas descabido, mas pode ser interpretado — com razão — como forma de pressão.

Diante dessa movimentação, dois fatos têm de ficar claros. Primeiro, não há — nem nunca houve — substância nas acusações bolsonaristas contra a urna eletrônica. Trata-se de um sistema de votação exemplar, reconhecido no mundo todo, em que jamais foi comprovada fraude. Sempre será possível aperfeiçoá-lo, mas os cenários inverossímeis aventados pelo representante militar na CTE nada oferecem em matéria de “colaboração para o processo eleitoral”. Servem apenas para semear confusão, com vista a uma possível tentativa de virada de mesa caso o resultado desfavoreça Bolsonaro.

Segundo, nem o TSE nem nenhuma instituição da República está sob tutela das Forças Armadas. As sugestões dos militares devem ser analisadas como as dos demais. A decisão sobre divulgá-las, aceitá-las ou recusá-las cabe aos técnicos do TSE — e a mais ninguém. Exigir transparência é razoável, mas fazer pressão porque ideias estapafúrdias não foram atendidas é inaceitável.

É essencial, por fim, ressaltar o papel republicano que as Forças Armadas mantêm desde a redemocratização. Felizmente, o Brasil dispõe de um quadro de militares profissional, capaz e competente. É da natureza de Bolsonaro tentar envolvê-los em seu projeto golpista. Cabe às Forças Armadas, sobretudo a seus líderes, evitar cair nessa armadilha, para que continuem a desempenhar sua principal missão constitucional: respeitar a democracia.

O que o revés contra o aborto legal nos Estados Unidos tem a ensinar ao Brasil

O Globo

A regulação do aborto tem se tornado mais permissiva nas últimas décadas em todo o mundo. Não foi sem razão que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou ainda outro dia, mesmo correndo o risco de perder votos dos mais conservadores, que estava na hora de o Brasil encará-lo como questão de saúde pública.

Um estudo do Instituto Guttmacher, da Suíça, publicado em março na revista científica BMJ Global Health, analisou 150 países e estimou em 121 milhões os casos anuais de gravidez indesejada entre 2015 e 2019. Dessas, 61% foram encerradas. Nos países em que o aborto é permitido, o índice subiu de 61% para 70% desde os anos 1990. Naqueles em que é proibido, o crescimento foi maior, de 36% para 50%. Ao mesmo tempo, a gravidez indesejada alcançou os índices mais baixos dos últimos 30 anos — 69 mulheres por mil.

Há certo pragmatismo, portanto, nos países que vêm adotando regras mais liberais. De acordo com um levantamento do jornal The Washington Post, mais de 30 expandiram o acesso ao aborto nos últimos 28 anos, e apenas três o restringiram (Nicarágua, Polônia e El Salvador). A tendência à liberalização tem se manifestado mesmo naqueles de forte tradição católica, como Irlanda (2018), México ( 2021), Argentina (2021) e Colômbia (2022).

Não é surpresa, porém, que o direito ao aborto esteja prestes a sofrer seu maior revés nos Estados Unidos, onde a legalidade (até a 24ª semana) repousa sobre duas decisões da Suprema Corte: Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992). Grupos que sempre as desafiaram estão perto do sucesso dada a atual composição do tribunal: seis juízes conservadores e três liberais.

Pela primeira vez na história da Corte, vazou para a imprensa a minuta de um voto, do juiz Samuel Alito, que derruba Roe e Casey com apoio de quatro outros juízes e devolve aos estados a prerrogativa de legislar sobre o assunto (a autenticidade foi reconhecida). A decisão diz respeito a um caso do Mississipi que restringe a legalidade até a 15ª semana (limite superior ao de Argentina, Alemanha, Suíça ou Noruega). Se Roe e Casey forem mesmo derrubadas, teme-se que leis mais restritivas sejam adotadas noutros estados — o aborto legal estaria ameaçado em 26 sob controle republicano e, pelas estimativas, liquidado em 21 deles.

Alito tem razão ao apontar a fragilidade em que se apoia o direito ao aborto no país. Decisão sobre tema dessa envergadura deveria caber ao Congresso, não a nove juízes que não receberam um voto sequer. Juristas liberais de respeito, entre os quais a juíza Ruth Bader Ginsburg, já criticaram Roe.

O receio de tocar em tema tão sensível explica a omissão contumaz do Congresso. A última tentativa dos democratas para aprovar uma lei nacional foi rejeitada em fevereiro (teve voto de 46 dos cem senadores). Com o país rachado ao meio, é inverossímil que outra prospere. O caso traz uma lição ao Brasil, onde o Judiciário também é instado a regular temas de que o Legislativo se esquiva: deixar a decisão ao Congresso, como fez a Argentina, é a saída mais democrática e menos frágil.

Energia demagógica

Folha de S. Paulo

Pressão para congelar contas de luz expõe riscos de um Congresso desgovernado

As pressões por um decreto legislativo destinado a barrar os reajustes autorizados das contas de luz neste ano —iniciadas com um texto que determina a providência no Ceará— ameaçam inaugurar um novo marco da irracionalidade econômica no país.

A proposta do deputado cearense Domingos Neto (PSD) passou a tramitar em regime de urgência na Câmara, com apoio de todos os partidos à exceção do Novo. Com sanha demagógica tão ampla, já se fala em estender o alcance do decreto, que não depende de sanção presidencial, a todos os estados.

Se é fato que os aumentos previstos, alguns acima dos 20%, serão dolorosos para os consumidores, a intervenção demagógica e voluntarista dos parlamentares mostra o potencial de provocar um desastre maior e mais duradouro.

Não são apenas os resultados financeiros das distribuidoras de energia que estão em risco. O projeto atropela a Aneel, agência reguladora do setor à qual cabe a decisão sobre tarifas, e a segurança jurídica das concessões do setor. Abre no país um precedente que será levado em conta por investidores de todas as áreas e atividades.

Afinal, se deputados e senadores pretendem interferir nas contas de luz, não haveria por que deixar de lado pedágios, telefonia, água e esgoto, para citar apenas os casos de maior apelo em ano eleitoral.

Essa nem de longe é a única demonstração recente de irresponsabilidade do Congresso, que vai distribuindo benesses estimulado pela inapetência política e gerencial de Jair Bolsonaro (PL). Afora os esforços autônomos do Banco Central para conter a inflação, a agenda econômica está à deriva.

Sem resistência por parte do Planalto nem fonte definida de recursos, a Câmara aprovou na quarta-feira (4), por esmagadores 449 votos a 12, um piso salarial de R$ 4.750 mensais para os enfermeiros, que vai à sanção de Bolsonaro.

Os custos para estados, municípios e setor privado são objeto de estimativas um tanto desencontradas, na casa dos bilhões de reais.

No mesmo dia, o Senado aprovou uma emenda à Constituição, já promulgada, que estabelece remuneração mínima de dois salários mínimos, ou R$ 2.424 mensais, a agentes comunitários de saúde. A medida, que tramitou por 11 anos, consumirá R$ 3,7 bilhões ao ano dos cofres federais.

Não se espere prudência de um Congresso fragmentado quando os piores exemplos vêm do Executivo —seja quando Bolsonaro ensaia intervir nos preços dos combustíveis, seja quando a área econômica patrocina o enfraquecimento do teto para os gastos federais inscrito na Constituição.

O oportunismo, neste momento, é capaz de unir governistas e oposicionistas. As contas, pelo visto, só serão feitas em 2023.

O tamanho da pandemia

Folha de S. Paulo

OMS apresenta noção aterradora de subnotificação e efeitos indiretos da Covid-19

Um estudo publicado nesta quinta-feira (5) pela Organização Mundial da Saúde procura fornecer um retrato mais fiel —e estarrecedor— da tragédia provocada pela pandemia de Covid-19 no mundo.

Segundo o órgão da ONU, cerca de 15 milhões de pessoas morreram, direta ou indiretamente, em razão da doença nos anos de 2020 e 2021. Trata-se de quase o triplo dos números oficiais (5,4 milhões), o que dá uma ideia da subnotificação na maior parte dos países.

Para chegar a esse dado, a OMS utilizou uma métrica conhecida como excesso de mortalidade, isto é, a diferença entre a quantidade de mortes durante a pandemia e a que deveria ocorrer em circunstâncias normais, considerados o padrão dos anos anteriores.

Embora a maior parte desses óbitos tenha sido causado diretamente pela Covid, os cálculos incluem também pessoas que morreram devido a complicações provocadas pela doença ou porque possuíam outras enfermidades, mas não puderam receber o tratamento adequado devido à sobrecarga dos sistemas de saúde.

Para oferecer o quadro mais acurado possível, o esforço estatístico considerou ainda as mortes esperadas que deixaram de ocorrer por causa das restrições da pandemia, como redução de acidentes de trânsito e o isolamento que impediu mortes por gripe e outras doenças infecciosas.

Quase um terço de todos esses óbitos (4,7 milhões) se deu na Índia, o que faz do país o líder, em números absolutos, do ranking da subnotificação. No fim do ano passado, o cômputo fornecido pelo governo indiano era de pouco mais de 480 mil casos fatais.

Proporcionalmente, contudo, a diferença mais expressiva entre o excesso de mortalidade e as estatísticas oficiais ocorreu no Egito —quase 12 vezes o contabilizado pelas autoridades.

No Brasil, o estudo da OMS aponta uma diferença de 74 mil óbitos ante as cifras oficiais (620 mil no final de 2021), perfazendo a marca de quase 700 mil mortes.

Não resta dúvida de que o resultado poderia ser diferente se não fosse a trágica gestão de Jair Bolsonaro (PL), cujo governo empenhou-se em sabotar todas as formas de prevenção da doença.

A realidade estimada pela OMS traz, para cada país, ensinamentos que deveriam ser absorvidos para as crises que virão no futuro.

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