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É
preciso reagir aos crimes de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Ao atacar o processo eleitoral e envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação das urnas, Bolsonaro incorre na prática de crimes. Congresso e PGR têm de agir
O Congresso e a Procuradoria-Geral da
República (PGR) têm o dever de reagir às ameaças e agressões que Jair Bolsonaro
vem cometendo contra a Constituição, a legislação eleitoral e a Lei 1.079/1950
(Lei do Impeachment). Não podem ficar passivos perante tão insistente violência
do presidente da República contra a ordem jurídica e o regime democrático.
No dia 5 de maio, Jair Bolsonaro anunciou
que as Forças Armadas vão realizar uma tarefa inteiramente estranha às suas
competências constitucionais. “As Forças Armadas não vão fazer papel de
chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadoras do mesmo”,
disse Bolsonaro.
Com tal anúncio, verdadeira ameaça contra o
processo eleitoral, o presidente da República violou a Constituição que jurou
defender. As Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem”, diz a Constituição. Não é papel dos militares tutelar eleições.
Entre os crimes de responsabilidade, a Lei 1.079/1950 inclui “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina”. De forma evidente e continuada, o que Jair Bolsonaro tem feito é incitar a que Marinha, Exército e Aeronáutica se sintam autorizados a agir fora de suas competências constitucionais. Ao contrário do que disse Bolsonaro, as Forças Armadas são rigorosamente espectadoras do processo eleitoral. É assim que funciona num regime democrático.
Meses atrás, Jair Bolsonaro incitou o
Congresso a colocar-se contra o processo eleitoral. Felizmente, o Legislativo
foi prudente e rejeitou as propostas do Palácio do Planalto. Em vez de
proporcionar maior segurança e confiabilidade, o projeto do voto impresso
introduzia fragilidades no sistema, suscitando situações para novas e velhas
fraudes. Era descarada tentativa de impor o retrocesso num processo eleitoral
que funciona muito bem, de forma rápida, segura e confiável. Na ocasião, Jair
Bolsonaro prometeu acatar a decisão do Congresso. Não apenas não cumpriu sua
promessa, como tenta agora envolver as Forças Armadas em sua campanha de
deslegitimação do processo eleitoral.
Infelizmente, a incitação de Jair Bolsonaro
para que as Forças Armadas atuem fora de suas competências não é um perigo
abstrato ou distante. Por exemplo, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio
Nogueira de Oliveira, sentiu-se no direito de pedir ao Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) a divulgação de propostas das Forças Armadas sobre o processo eleitoral.
O ofício do ministro da Defesa é um total disparate, a revelar incompreensão
sobre o funcionamento de um Estado Democrático de Direito.
O convite para que as Forças Armadas
participassem, em função consultiva, sem nenhum poder decisório, da Comissão
Externa de Transparência da Justiça Eleitoral não autoriza o ministro da Defesa
a exercer pressão pública sobre o TSE, opinando sobre o que a Corte deveria dar
publicidade. Cabe ao TSE ser muito firme na defesa de suas prerrogativas
constitucionais, sem transigir com esse tipo de pressão, que, de uma só vez,
agride a independência do Judiciário e extrapola as competências das Forças
Armadas.
Como se não bastasse, Jair Bolsonaro
anunciou que seu partido, o PL, vai contratar uma empresa para auditar as
eleições. A legislação eleitoral prevê essa possibilidade, mas não é bem isso o
que Bolsonaro quer. Ele deseja criar atrito com a Justiça Eleitoral e
desconfiança nas urnas. Já até anunciou a pretensa jogada: “Ela (a empresa) pode falar ‘aqui é
impossível auditar’ e não fazer o trabalho. Olha a que ponto vamos chegar”,
disse. Com essa conduta, Jair Bolsonaro incorre noutro crime de
responsabilidade, previsto no art. 7.º da Lei 1.079/1950: “Utilizar o poder
federal para impedir a livre execução da lei eleitoral”.
O País tem, portanto, lei para punir Jair
Bolsonaro pelo que está fazendo. Cabe ao Congresso e à PGR torná-la efetiva.
Não é tempo de covardia. Ao permitirem que o presidente da República perturbe
as eleições, como há tempos está fazendo, as instituições a quem caberia
impedi-lo prejudicam a si mesmas. Afinal, no regime sonhado por Bolsonaro, o
Congresso, o Ministério Público e outras expressões do poder soberano do povo
não têm nenhuma serventia.
Liberdade ainda que tardia no saneamento
O Estado de S. Paulo
Por décadas grupos de interesse obliteraram a modernização do setor. O País não pode poupar esforços para quitar essa dívida histórica e pôr fim à sua maior tragédia humanitária
O saneamento é a expressão mais brutal do
atraso e da desigualdade no Brasil e, ao mesmo tempo, da ineficiência de um
Estado obeso e aferrado a privilégios corporativos.
Os números são bem conhecidos e
persistentes: quase metade da população não tem acesso a esgoto; 35 milhões de
pessoas não têm água potável; mais da metade do esgoto não é tratada.
É uma catástrofe moral, social, ambiental e
econômica. Estima-se que diariamente mais de 40 pessoas morrem e quase 1.000
são internadas por doenças ligadas à falta de saneamento, como diarreia ou
febre tifoide. Quase 40% de toda a água encanada é desperdiçada e todos os dias
são despejadas 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto nas águas brasileiras.
Especialistas calculam que cada real investido em saneamento gere um retorno de
até R$ 4 por meio da geração de empregos, produtividade do trabalho,
valorização imobiliária, turismo ou economias com saúde.
Na última década, os investimentos não
chegaram à metade dos R$ 25 bilhões anuais estabelecidos no Plano Nacional de
Saneamento para atingir as metas de universalização: água potável para 99% da
população e coleta e tratamento de esgoto para 90% até 2033. Para piorar, os
investimentos vinham caindo e o cálculo parece defasado: especialistas apontam
a necessidade de investir entre R$ 30 bilhões e R$ 60 bilhões ao ano.
A Constituição previu que os serviços
públicos fossem precedidos de licitação e proibiu tratamentos privilegiados às
estatais. No entanto, mais de 30 anos depois, ao contrário de áreas como
energia, transporte ou telecomunicações, as companhias estaduais continuavam
monopolizando o mercado. As parcerias público-privadas, mesmo atendendo apenas
6% dos municípios, respondem por 20% dos investimentos.
O Marco do Saneamento de 2020 desmantelou
essa máquina do atraso. Ao centralizar na Agência Nacional de Águas (ANA) a
regulação dos serviços, permitir a regionalização do saneamento por meio da
montagem de blocos intermunicipais e, sobretudo, obrigar a licitação dos
contratos, o Marco garantiu a segurança jurídica e a competitividade aptas a
atrair investimentos e gerar eficiência.
Associações do setor estimam que os
investimentos devem crescer em média 4,1 vezes. Os primeiros leilões foram
marcados por forte concorrência e altos ágios, chegando a elevar os investimentos
em 15%. Ao abrir o mercado à iniciativa privada, o Marco ainda possibilita ao
Poder Público focar esforços onde eles são indispensáveis para amparar os
municípios mais precários com subsídios estruturais e financeiros.
O Marco criou as condições para uma
verdadeira revolução subterrânea. Mas não sem resistência. Um dia antes de sua
sanção, 16 governadores solicitaram à presidência que fosse mantida a
possibilidade de renovação dos contratos das estatais por 30 anos sem
licitação. Em torpe desserviço às suas populações, muitos desses governantes e
associações corporativas ainda tentaram barrar a licitação na Justiça. A
maioria está nas Regiões Norte e Nordeste, onde, não por acaso, só 12% e 28% da
população, respectivamente, conta com coleta de esgoto.
O levantamento divulgado pela ANA da
capacidade econômico-financeira das prestadoras de serviço é mais uma prova da
importância do Marco e do ônus do atraso na sua aprovação.
Em mais da metade dos municípios, sobretudo
no Norte e Nordeste, as prestadoras não comprovaram capacidade para a
universalização. Pela lei, seus contratos devem ser cassados e as operações
devem ser licitadas, com a participação da iniciativa privada. Cabe aos órgãos
reguladores subnacionais e aos municípios conduzir os processos de caducidade.
Não se deve subestimar as forças do atraso.
As criaturas do esgoto político conseguiram postergar por décadas a extinção
dos privilégios que mantêm dezenas de milhões de brasileiros soterrados na
degradação. A sociedade e seus representantes eleitos precisam se municiar para
cobrar sem trégua a relicitação pelas autoridades locais e, em caso de omissão,
a atuação do Ministério Público. É um imperativo moral, social, econômico e
ambiental.
A gasolina no picadeiro
O Estado de S. Paulo
Bolsonaro sabe por que combustível está caro, mas, por eleição, berra em defesa do consumidor e na crítica à Petrobras
Mais do que em peça de teatro, o presidente
Jair Bolsonaro transformou em enredo de picadeiro eleitoral os dramas em que
seu desgoverno fez o País mergulhar. Dia sim e outro também, às vezes aos
berros, Bolsonaro aponta seu dedo em muitas direções para mostrar quais são, na
sua interpretação intencionalmente equivocada, os responsáveis por situações
que ele próprio criou, ajudou a criar ou nada faz para superar.
Deliberadamente desvirtuando o mundo real,
tenta reverter a rejeição popular que coloca em sério risco sua reeleição. Seu
tema preferido tem sido a gasolina, cujo preço tem peso relevante na inflação
persistente que prejudica as pretensões eleitorais de um presidente que só está
preocupado em se manter no cargo.
Em sua live semanal das quintas-feiras, Bolsonaro atacou
duramente a Petrobras pouco antes de a empresa anunciar seus resultados no
primeiro trimestre, resumidos no lucro recorde de R$ 44,5 bilhões. Disse que
lucros dessa grandeza são “um crime inadmissível”, “um estupro”. Acrescentou
que, “se tiver mais um aumento (dos
combustíveis), pode quebrar o Brasil, e o pessoal da Petrobras não
entende ou não quer entender”.
De sua parte, Bolsonaro entende a política
de preços da Petrobras, como disse ao Estadão o presidente da empresa, José
Mauro Ferreira Coelho. Por isso, ao investir contra a empresa e sua forma de
definir os preços de seus produtos, o presidente da República apenas utiliza o
problema como tema do palanque que montou no circo em que pretende transformar
o País. É tudo encenação eleitoreira.
Preços altos do petróleo e, por
consequência, de seus derivados, bem como uma certa desordem na economia
mundial, decorrem de fatos extraordinários, entre os quais a guerra na Ucrânia
e o lockdown em grandes cidades da China para tentar reduzir os casos de
contaminação pela covid-19. Impactos igualmente extraordinários decorrem desses
fatos. A inflação se acelerou de maneira notável em todo o mundo, com especial
destaque para o caso brasileiro. Crescem as previsões de que o País terá
inflação de dois dígitos pelo segundo ano consecutivo, fato não registrado
desde o início do Plano Real, em 1994.
É nesse ambiente de fatos fora do normal
que a Petrobras registrou lucro extraordinário nos três primeiros meses de
2022, que foi 3.718% maior do que o de um ano antes. Alta do petróleo no
mercado internacional, aumento do volume e do valor exportado, redução de
custos com a importação de gás natural liquefeito, aumento das margens na venda
de óleo diesel são alguns dos fatores que explicam esse resultado excepcional.
Não há como identificar neles intenção criminosa ou insensibilidade gerencial
da direção da empresa.
Ganham os acionistas e o País com a gestão
profissional da Petrobras, resistente a pressões políticas que prejudicaram a
empresa em governos anteriores. Nos três primeiros meses do ano, a empresa
pagou R$ 70 bilhões em impostos, royalties e participações governamentais. Aos
acionistas, o maior dos quais é o governo, pagará R$ 48,5 bilhões em
dividendos.
Preocupa a atitude de militares diante do
sistema eleitoral
O Globo
Tem sido, na leitura generosa, decepcionante — ou, na pessimista, preocupante — a atitude de alguns representantes das Forças Armadas diante da eleição que se avizinha. É o caso dos últimos movimentos do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, que traduzem uma aproximação perigosa da instituição essencial da República que ele representa com teses conspiratórias absurdas sobre as urnas eletrônicas e a articulação política de evidente cunho golpista promovida pelo presidente Jair Bolsonaro.
É verdade que Nogueira estava certo ao
contestar a frase infeliz do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal
Federal (STF), insinuando que as Forças Armadas tivessem sido “orientadas a
atacar o processo eleitoral”. Desde então, porém, suas palavras e atos parecem
dar razão à insinuação.
Ele foi com Bolsonaro a uma reunião do
Alto-Comando do Exército, de modo a sugerir proximidade entre o presidente e a
cúpula militar. Em seguida, encontrou-se com o presidente do STF, Luiz Fux, na
tentativa aparente de apaziguar os ânimos institucionais. Depois, enquanto o
STF celebrou o encontro como um compromisso em defesa da democracia, o
Ministério da Defesa emitiu uma nota tíbia.
O texto preza o “respeito entre as instituições”, fala na “colaboração das Forças Armadas para o processo eleitoral”, mas, numa frase dúbia, reafirma “o permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de suas missões constitucionais”. Que missões? A dúvida fica no ar. Em nenhum momento a nota usa a palavra-chave capaz de saná-la: democracia.
Nogueira também enviou ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a divulgação do questionamento do representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE). Ora, o TSE já divulgou relatório com respostas às sugestões dos integrantes da CTE, não apenas o militar. O pedido não é apenas descabido, mas pode ser interpretado — com razão — como forma de pressão.
Diante dessa movimentação, dois fatos têm
de ficar claros. Primeiro, não há — nem nunca houve — substância nas acusações
bolsonaristas contra a urna eletrônica. Trata-se de um sistema de votação
exemplar, reconhecido no mundo todo, em que jamais foi comprovada fraude.
Sempre será possível aperfeiçoá-lo, mas os cenários inverossímeis aventados
pelo representante militar na CTE nada oferecem em matéria de “colaboração para
o processo eleitoral”. Servem apenas para semear confusão, com vista a uma
possível tentativa de virada de mesa caso o resultado desfavoreça Bolsonaro.
Segundo, nem o TSE nem nenhuma instituição
da República está sob tutela das Forças Armadas. As sugestões dos militares
devem ser analisadas como as dos demais. A decisão sobre divulgá-las,
aceitá-las ou recusá-las cabe aos técnicos do TSE — e a mais ninguém. Exigir
transparência é razoável, mas fazer pressão porque ideias estapafúrdias não
foram atendidas é inaceitável.
É essencial, por fim, ressaltar o papel
republicano que as Forças Armadas mantêm desde a redemocratização. Felizmente,
o Brasil dispõe de um quadro de militares profissional, capaz e competente. É
da natureza de Bolsonaro tentar envolvê-los em seu projeto golpista. Cabe às
Forças Armadas, sobretudo a seus líderes, evitar cair nessa armadilha, para que
continuem a desempenhar sua principal missão constitucional: respeitar a
democracia.
O que o revés contra o aborto legal nos
Estados Unidos tem a ensinar ao Brasil
O Globo
A regulação do aborto tem se tornado mais permissiva nas últimas décadas em
todo o mundo. Não foi sem razão que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
declarou ainda outro dia, mesmo correndo o risco de perder votos dos mais
conservadores, que estava na hora de o Brasil encará-lo como questão de saúde
pública.
Um estudo do Instituto Guttmacher, da
Suíça, publicado em março na revista científica BMJ Global Health, analisou 150
países e estimou em 121 milhões os casos anuais de gravidez indesejada entre
2015 e 2019. Dessas, 61% foram encerradas. Nos países em que o aborto é
permitido, o índice subiu de 61% para 70% desde os anos 1990. Naqueles em que é
proibido, o crescimento foi maior, de 36% para 50%. Ao mesmo tempo, a gravidez
indesejada alcançou os índices mais baixos dos últimos 30 anos — 69 mulheres
por mil.
Há certo pragmatismo, portanto, nos países
que vêm adotando regras mais liberais. De acordo com um levantamento do jornal
The Washington Post, mais de 30 expandiram o acesso ao aborto nos últimos 28
anos, e apenas três o restringiram (Nicarágua, Polônia e El Salvador). A
tendência à liberalização tem se manifestado mesmo naqueles de forte tradição
católica, como Irlanda (2018), México ( 2021), Argentina (2021) e Colômbia
(2022).
Não é surpresa, porém, que o direito ao
aborto esteja prestes a sofrer seu maior revés nos Estados Unidos, onde a
legalidade (até a 24ª semana) repousa sobre duas decisões da Suprema Corte: Roe
v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992). Grupos que sempre as
desafiaram estão perto do sucesso dada a atual composição do tribunal: seis
juízes conservadores e três liberais.
Pela primeira vez na história da Corte,
vazou para a imprensa a minuta de um voto, do juiz Samuel Alito, que derruba
Roe e Casey com apoio de quatro outros juízes e devolve aos estados a
prerrogativa de legislar sobre o assunto (a autenticidade foi reconhecida). A
decisão diz respeito a um caso do Mississipi que restringe a legalidade até a
15ª semana (limite superior ao de Argentina, Alemanha, Suíça ou Noruega). Se
Roe e Casey forem mesmo derrubadas, teme-se que leis mais restritivas sejam
adotadas noutros estados — o aborto legal estaria ameaçado em 26 sob controle
republicano e, pelas estimativas, liquidado em 21 deles.
Alito tem razão ao apontar a fragilidade em
que se apoia o direito ao aborto no país. Decisão sobre tema dessa envergadura
deveria caber ao Congresso, não a nove juízes que não receberam um voto sequer.
Juristas liberais de respeito, entre os quais a juíza Ruth Bader Ginsburg, já
criticaram Roe.
O receio de tocar em tema tão sensível explica a omissão contumaz do Congresso. A última tentativa dos democratas para aprovar uma lei nacional foi rejeitada em fevereiro (teve voto de 46 dos cem senadores). Com o país rachado ao meio, é inverossímil que outra prospere. O caso traz uma lição ao Brasil, onde o Judiciário também é instado a regular temas de que o Legislativo se esquiva: deixar a decisão ao Congresso, como fez a Argentina, é a saída mais democrática e menos frágil.
Energia demagógica
Folha de S. Paulo
Pressão para congelar contas de luz expõe
riscos de um Congresso desgovernado
As pressões por um decreto legislativo
destinado a barrar os reajustes autorizados das contas de luz neste ano
—iniciadas com um texto que determina a providência no Ceará— ameaçam inaugurar
um novo marco da irracionalidade econômica no país.
A proposta do deputado cearense Domingos
Neto (PSD) passou a tramitar em regime de urgência na Câmara, com apoio de
todos os partidos à exceção do Novo. Com sanha demagógica tão ampla, já se fala
em estender o alcance do decreto, que não depende de sanção presidencial, a
todos os estados.
Se é fato que os aumentos previstos, alguns
acima dos 20%, serão dolorosos para os consumidores, a intervenção demagógica e
voluntarista dos parlamentares mostra o potencial de provocar um desastre maior
e mais duradouro.
Não são apenas os resultados financeiros
das distribuidoras de energia que estão em risco. O projeto atropela a Aneel,
agência reguladora do setor à qual cabe a decisão sobre tarifas, e a segurança
jurídica das concessões do setor. Abre no país um precedente que será levado em
conta por investidores de todas as áreas e atividades.
Afinal, se deputados e senadores pretendem
interferir nas contas de luz, não haveria por que deixar de lado pedágios,
telefonia, água e esgoto, para citar apenas os casos de maior apelo em ano
eleitoral.
Essa nem de longe é a única demonstração
recente de irresponsabilidade do Congresso, que vai distribuindo benesses
estimulado pela inapetência política e gerencial de Jair Bolsonaro (PL). Afora
os esforços autônomos do Banco Central para conter a inflação, a agenda
econômica está à deriva.
Sem resistência por parte do Planalto nem
fonte definida de recursos, a Câmara aprovou na quarta-feira (4), por
esmagadores 449 votos a 12, um piso salarial de R$ 4.750 mensais para os
enfermeiros, que vai à sanção de Bolsonaro.
Os custos para estados, municípios e setor
privado são objeto de estimativas um tanto desencontradas, na casa dos bilhões
de reais.
No mesmo dia, o Senado aprovou uma emenda à
Constituição, já promulgada, que estabelece remuneração mínima de dois salários
mínimos, ou R$ 2.424 mensais, a agentes comunitários de saúde. A medida, que
tramitou por 11 anos, consumirá R$ 3,7 bilhões ao ano dos cofres federais.
Não se espere prudência de um Congresso
fragmentado quando os piores exemplos vêm do Executivo —seja quando Bolsonaro
ensaia intervir nos preços dos combustíveis, seja quando a área econômica
patrocina o enfraquecimento do teto para os gastos federais inscrito na
Constituição.
O oportunismo, neste momento, é capaz de unir governistas e oposicionistas. As contas, pelo visto, só serão feitas em 2023.
O tamanho da pandemia
Folha de S. Paulo
OMS apresenta noção aterradora de
subnotificação e efeitos indiretos da Covid-19
Um estudo
publicado nesta quinta-feira (5) pela Organização Mundial da Saúde
procura fornecer um retrato mais fiel —e estarrecedor— da tragédia provocada
pela pandemia de Covid-19 no mundo.
Segundo o órgão da ONU, cerca de 15 milhões
de pessoas morreram, direta ou indiretamente, em razão da doença nos anos de
2020 e 2021. Trata-se de quase o triplo dos números oficiais (5,4 milhões), o
que dá uma ideia da subnotificação na maior parte dos países.
Para chegar a esse dado, a OMS utilizou uma
métrica conhecida como excesso de mortalidade, isto é, a diferença entre a quantidade
de mortes durante a pandemia e a que deveria ocorrer em circunstâncias normais,
considerados o padrão dos anos anteriores.
Embora a maior parte desses óbitos tenha
sido causado diretamente pela Covid, os cálculos incluem também pessoas que
morreram devido a complicações provocadas pela doença ou porque possuíam outras
enfermidades, mas não puderam receber o tratamento adequado devido à sobrecarga
dos sistemas de saúde.
Para oferecer o quadro mais acurado
possível, o esforço estatístico considerou ainda as mortes esperadas que
deixaram de ocorrer por causa das restrições da pandemia, como redução de
acidentes de trânsito e o isolamento que impediu mortes por gripe e outras
doenças infecciosas.
Quase um terço de todos esses óbitos (4,7
milhões) se deu na Índia, o que faz do país o líder, em números absolutos, do
ranking da subnotificação. No fim do ano passado, o cômputo fornecido pelo
governo indiano era de pouco mais de 480 mil casos fatais.
Proporcionalmente, contudo, a diferença
mais expressiva entre o excesso de mortalidade e as estatísticas oficiais
ocorreu no Egito —quase 12 vezes o contabilizado pelas autoridades.
No Brasil, o estudo da OMS aponta uma
diferença de 74 mil óbitos ante as cifras oficiais (620 mil no final de 2021),
perfazendo a marca de quase 700 mil mortes.
Não resta dúvida de que o resultado poderia
ser diferente se não fosse a trágica gestão de Jair Bolsonaro (PL), cujo
governo empenhou-se em sabotar todas as formas de prevenção da doença.
A realidade estimada pela OMS traz, para cada país, ensinamentos que deveriam ser absorvidos para as crises que virão no futuro.
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