domingo, 29 de maio de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto*: Os institutos de pesquisa e o jogo das preferências

O Datafolha divulgou, no último 27 de maio, nova pesquisa de intenção de voto para Presidente. Passaram-se dois meses desde a divulgação da pesquisa imediatamente anterior desse mesmo instituto, datada de 22 de março. A nova pesquisa trouxe, como primeira novidade, um aumento da diferença entre as intenções de voto em Lula e em Bolsonaro, favorável ao primeiro. De março para cá essa diferença terá passado, segundo o Datafolha, de 17 pontos percentuais (43x26) para 21 pontos (48x27). Enquanto as intenções de voto no atual presidente oscilaram minimamente para cima, dentro da margem de erro, as do ex-presidente excedem essa margem, fazendo com que a diferença entre ambos também a exceda.  Uma segunda novidade, talvez mais significativa, é que a fotografia numérica de maio aponta a uma vitória de Lula já no primeiro turno, o que não havia sido fotografado em março.

As duas boas notícias foram suficientes para que um clima de vitória antecipada tomasse conta, pelo menos daquelas franjas da campanha de Lula que se percebe nas redes sociais, nos humores da militância em geral e até mesmo em declarações e postagens dos seus quadros políticos mais afoitos. O próprio candidato - no pleno e atento exercício do seu ofício de injetar otimismo para elevar ainda mais o moral da tropa – não escondeu o bom humor, dizendo que Bolsonaro não dormiu após a divulgação.

A recepção à citada pesquisa assume ares de uma onda reforçadora do argumento em favor de um “voto útil” à esquerda, que consume a eleição no primeiro turno, não só para assegurar a vitória de Lula, como para ajudar a desativar manobras e atos golpistas de Bolsonaro que intentem inibir, constranger e/ou desacreditar as eleições. Manobras e atos que, com razão, se supõe mais difíceis de terem êxito no primeiro turno, dada a grande quantidade de candidatos aos diversos cargos eletivos em disputa nos pleitos simultâneos, todos eles, a princípio, interessados diretos no respeito ao resultado das urnas. Penso que essa onda tem tido o poder de influenciar de modo importante as dimensões subjetivas do noticiário da imprensa e até o colunismo especializado, seja de jornalistas ou de estudiosos da área, a ponto de outros aspectos serem ofuscados pela virtual ordem de grandeza do movimento mencionado.

O Ipespe também é um instituto que goza de ótima reputação. Trabalha com pesquisas mais frequentes – quinzenais e parece que, a partir de agora, até semanais – o que permite flagrar mais detalhes e apreender um sentido de processo, de filmagem, que vai além de fotografias mais estanques. Por outro lado - é óbvio, mas é bom frisar - faz levantamentos de dimensões menores que os do Datafolha, assim como tendem a ser menores seus impactos sobre a opinião leiga. As diferenças não fazem um instituto ser mais confiável que outro – ambos o são, por inúmeras razões que não vem ao caso enumerar aqui – apenas alertam para a impropriedade de se comparar diretamente os achados das pesquisas de um com os achados das pesquisas do outro.

Isso posto, consideremos que o Ipespe também divulgou uma nova pesquisa ontem, o mesmo dia em que foi divulgada a do Datafolha. Pelo que pude conferir, foi a quinta pesquisa Ipespe em dois meses, sendo as quatro anteriores divulgadas nos dias 6 e 22 de abril e nos dias 6 e 20 de maio. Portanto, a imediatamente anterior apenas uma semana antes da que veio a público ontem. Nessa última, a diferença entre as intenções de voto em Lula e em Bolsonaro é de 11 pontos percentuais (45X34), bem menor, portanto, que aquela registrada pelo outro instituto. No caso do Ipespe, ao longo das suas cinco pesquisas do período acima mencionado, essa diferença vem oscilando moderadamente para baixo, oscilação que sempre pode ser posta em dúvida em razão das margens de erro de todas as pesquisas. Era de 14 pontos (44x30) no início de abril, permaneceu a mesma (45x31) no final daquele mês, passou a ser de 13 pontos (44x31) no começo de maio, de 12 pontos (44x32) no dia 20.05 e agora chegou a 11.  

O contraste entre os dados dos dois institutos é auto evidente: 21 pontos, o limite atual do intervalo de variação da diferença entre Lula e Bolsonaro, do final de março para cá, conforme o Datafolha, é quase o dobro daquele limite atual do intervalo captado pelo Ipespe, desde o começo de abril. Lá no começo do período observado, os dados dos dois institutos sobre a diferença entre os dois líderes em intenção de voto eram próximos (14 e 17 pontos). Agora parece, no susto, que cada instituto pegou um caminho.

Está fora do objetivo e alcance desta coluna dar explicação convincente para a discrepância de patamares. Já grisalhei há vários anos e não tenho a menor intenção, nem competência, de me arvorar a ser mais um novíssimo entendido em pesquisas, dos que têm se espalhado por aí, seja como legistas de galinhas mortas ou adivinhos de ovos ainda não postos, alguns com o requinte de quererem ser ambas as coisas. A mesma alva condição de quase pós-grisalho sugere-me, contudo, que é equívoco deduzir, da tal discrepância, que um dos institutos “erra” ou que as duas pesquisas remetem a realidades distintas. Acho mais sensato admitir que possam ser duas faces de uma mesma realidade. A fotografia do Datafolha indica uma possibilidade (um arranque de Lula) que não contradiz o processo que o filme do Ipespe mostra até aqui, mas também não é sua consequência lógica, como os fogos de artifício sugerem.

Se não é possível explicar facilmente a discrepância, é possível compreender bem a convergência (que também existe) entre o que vêm dizendo, há meses, as pesquisas dos dois institutos citados e de outros grupos profissionais igualmente respeitáveis, como o Genial Quaest e o Idea Data.  Para isso, recorro ao que interpretou e explicou Antônio Lavareda – um profissional do ramo, que interpreta e explica, bem além do que pode fazer um legista e aquém (ainda bem) do que pretende um adivinho – após a última rodada da série de pesquisas Ipespe, pela qual é responsável.   

A afirmação de Lavareda é que a chance de a eleição ser decidida em um turno vem crescendo. E o argumento é que isso ocorre à medida em que aumenta o número de pessoas que se decidem por Lula ou por Bolsonaro e à medida em que as demais pré-candidaturas não conseguem transpor uma barreira ao próprio crescimento, posta também (embora saibamos que não só por isso) pela própria polarização em curso. É a tão comentada (e certamente também desejada) cristalização da polarização, que por ser, neste momento, real, ameaça, na visão de muitos (devemos excluir Lavareda desse veredicto) tornar a campanha eleitoral uma mera reprodução ampliada de um processo a essa altura já irreversível.

Deixando de lado as previsões, fiquemos naquilo que o já filmado nos mostra. Um estreitamento paulatino do espaço para alternativas e, se mantida essa condição, aumento das chances de não haver segundo turno. É importante prestar atenção no modo gerúndio: as chances aumentam, mas além de não ser um jogo jogado, também não se tornou um jogo marcado, dependente apenas da vontade e dos movimentos do líder das pesquisas. Ninguém foi eliminado e todos podem ter algum papel. Há outras coisas em jogo, além do título. Numa palavra, dizer que crescem as chances de se decidirem as coisas no primeiro turno não leva automaticamente a dizer que é assim porque Lula disparou. O primeiro dito é afirmativo e é um consenso nas pesquisas. O segundo dito é sugestivo e, por enquanto, apareceu só no Datafolha. Tomar os dois ditos por um só seria um erro de Lula, um flerte com o autoengano. Mas é mera questão de tempo, dirão os convictos. Sem ter como contestar, sigo outro caminho. Sem podermos saber agora se a medida mais exata da diferença entre as intenções de voto em Lula e em Bolsonaro é 11 ou 21, exploremos aspectos políticos de uma e de outra hipótese. Análises políticas não são matéria de estatísticos, por mais que estatísticos sejam bem vindos como suportes ao realismo das reflexões.

Reflitamos primeiro a partir dos números da pesquisa do Ipespe. Sem maiores novidades, se o quadro é esse, o feijão com arroz é a pedida geral. Lula precisará continuar a segurar seus radicais para que siga, a conta-gotas, a pescaria de aliados nos estados, contornando, quando não minando, os partidos. Terá como objetivo ganhar no primeiro turno, costeará esse alambrado, mas disputar um segundo turno contra Bolsonaro e vencê-lo seguirá sendo a hipótese mais provável; o próprio Bolsonaro precisará seguir no morde/assopra, um olho na urna, outro na insurgência contra elas. Seu malabarismo é refazer pontes detonadas com parte do seu eleitorado de 2018 e manter ativas as falanges insurgentes. É o tipo do jogador que depende cada vez mais de terceiros para se dar bem, com o agravante de que não é sua praia confiar em parceiros; Ciro Gomes precisará, ao estilo anfíbio de esgrima e luta livre, cada vez mais diversificar os destinatários para manter sua pré-candidatura a salvo das pressões do voto útil e lulista. Implica falar a um eleitorado conservador e liberal com um programa econômico ancorado à esquerda, referência que não quer perder; e Simone Tebet, estreando numa arena plebiscitária mais afunilada, precisará seguir em busca do tempo perdido pelo campo que integra. O tempo terá que ser mais lento, para os três rivais à sua frente, para que ela acelere o seu, faça-se conhecida, ganhe pontos e mantenha moderada sua rejeição, cujo aumento é inevitável por qualquer candidatura que alcance idade eleitoral adulta. Será matar um leão todo dia para afirmar-se, perante o eleitorado, como candidatura de centro e feminina e consolidar, junto a seu partido e aliados, o espaço conquistado nas últimas duas semanas.

Agora raciocinemos com a hipótese dos números do Datafolha não serem uma fotografia acidental, sujeita a reversão na foto seguinte e indiquem uma tendência, a ser captada pelos demais institutos nos próximos dias e semanas. O quadro não seria inteiramente outro, mas teria novo traço, merecedor de muita atenção: uma vantagem mais que confortável de Lula, concretizando o espectro de sua vitória no primeiro turno. Caberá, nesse caso, observar as inflexões que esse fato poderá ter nas pré-campanhas.

Na de Lula, algumas possibilidades já se mostram na prática, com o advento da onda de otimismo que comentei no início desta coluna. Caso se mantenha essa atitude preditiva de que uma vitória de Lula ocorrerá, mesmo com uma frente de esquerda típica de primeiro turno - apenas temperada com chuchu e acompanhada de pratos regionais -, a campanha do voto útil continuará a atormentar a de Ciro Gomes. Mas agora haveria o risco de se somar, à pressão, o desdém que se destina a um rival já vencido. Desvanecer-se-ão, provavelmente, as expectativas que porventura hoje existam, em outras áreas de centro e centro-esquerda, de que o discurso político - ou talvez o programa de governo do candidato - sofra inflexões de qualquer natureza. Uma alegação, educada, para frustrar as expectativas, será, no mínimo, a de que não se mexe em time que está ganhando. Se houver interlocutores insistentes que coloquem a incômoda questão do depois, arriscam-se a ouvir, polidamente, que a cada dia a sua agonia ou, no limite, se provocado o afloramento de antiga arrogância, que vão chorar ao pé do caboclo. Ou no porão do navio cheio de asas, que chegará voando, do céu ao chão de Brasília, para reconstruí-la. Essa autorreferência fundada no que pode ser um autoengano não é, a meu ver, uma fatalidade. À volta de Lula não há mais tantos cegos como outrora, nem todos são áulicos. Haverá, entre seus aliados, vozes de alguns Flavios Dinos e de petistas moderados, sabedores de que água é água, ar é ar e terra é terra. Se a pesquisa Datafolha for, de fato, prenúncio, espera-se que eles estarão empenhados em ganhar a eleição com mais glória e mais chance de sustentar a vitória na vida difícil que se seguirá. Mas é razoável pensar que riscos da onda precoce serão tanto maiores quanto mais cedo as opções forem tiradas do caminho.

Na próxima semana tratarei de possíveis repercussões desse novo quadro, que muitos supõem, talvez com razão, ter sido revelado pela mais recente pesquisa Datafolha, sobre as três outras candidaturas, antes comentadas à luz da hipótese fílmica, a do Ipespe. Sobre isso adianto apenas, aqui, impressões de momento, carentes ainda de melhor reflexão. Penso que talvez Bolsonaro, de fato, não tenha dormido e que Ciro Gomes menos ainda. Já Simone Tebet poderá não ser afetada, ou talvez o seja positivamente, não pela ascensão de Lula, em si, mas pelo correspondente enfraquecimento relativo de Bolsonaro, que essa ascensão suscitará, caso se confirme.

Ocioso dizer que essas impressões imediatas servem à tentativa de me afastar de legistas e adivinhos da política. Mas, apesar de seus pesares, os primeiros são levados a constatar, em suas necrópsias, e os segundos a se surpreender, em suas prospecções, com a condição da política de não comportar espaços vazios que fiquem desocupados além de um curtíssimo prazo. Em poucos campos como nela vale a máxima de Gentil Cardoso: “quem pede tem preferência, quem se desloca recebe”.  E vice-versa.

*Cientista político e professor da UFBa

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