sábado, 18 de junho de 2022

Carlos Alberto Sardenberg: A vida tem preço. É cara

O Globo

Aconteceu antes da pandemia, mas o assunto permanece atual. Cenário: um amplo congresso reunindo juízes, advogados, funcionários da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), representantes de órgãos de defesa do consumidor, executivos dos planos de saúde e hospitais. Tema: as ações que cobravam das seguradoras tratamentos e remédios que não constavam do rol da ANS ou do contrato. (Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça voltou ao tema). Um desembargador conclui sua apresentação em grande estilo:

— Toda vez que cai na minha mesa uma disputa entre o segurado e o plano, eu decido a favor do segurado, porque a vida não tem preço.

Juízes de diversas instâncias têm decidido na mesma direção. No começo de 2019, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, sapecou:

— Saúde não é mercadoria, vida não é negócio, dignidade não é lucro.

Tratava-se de uma resolução da ANS que autoriza planos a cobrar uma coparticipação dos segurados em determinados procedimentos. A ministra, claro, decidiu contra os planos.

Na verdade, não deveria ser assim. Colocada nesses termos — segurado, um indivíduo com um problema de saúde, versus os planos, grandes corporações — , a decisão será sempre a favor do indivíduo. A Constituição determina: saúde é direito de todos e dever do Estado.

Só que a vida tem preço. No primeiro caso, para começar, a prestação mensal do plano.

No caso da ministra, é verdade que não se encontra o produto saúde numa prateleira de supermercado, mas é preciso comprar um monte de produtos e serviços para ter saúde: comida, um bom lugar para morar, água, luz elétrica, roupas e… consultas médicas, vacinas, remédios, talvez uma cirurgia.

Também não se encontra doença na prateleira do supermercado — com o perdão da obviedade —, mas quem não pode pagar pelos remédios adoece. Dirão: mas quem é atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não paga nada e, sendo tudo de graça, não se encontra aí qualquer relação com o mercado.

Outro equívoco.

Primeiro, que não é de graça. Todos os brasileiros, saudáveis ou doentes, pacientes ou não do sistema público, pagam impostos para financiar o SUS. Além disso, o SUS compra remédios, contrata médicos e enfermeiros, aluga serviços de hospitais particulares — e tudo isso tem preço, cada vez mais alto. As novas tecnologias e medicamentos de ponta tornam a medicina muito mais eficaz. E mais custosa.

A questão séria, portanto, é muito simples de formular: como financiar os sistemas de saúde. Pelo que se vê no Brasil e mundo afora, é difícil definir uma política pública que contemple as questões econômicas e morais. Por aqui, está claro que o SUS não dá conta de sua missão constitucional. Não consegue atender toda a população brasileira. Além disso, está subfinanciado para o que faz no momento. Remunera mal tanto seus profissionais quanto os hospitais que atendem o SUS.

Vamos falar francamente: por esse interior, tem gente que morre por falta de dinheiro — dinheiro público para os serviços locais. De qualquer perspectiva, social ou econômica, é preciso fortalecer o SUS com mais dinheiro e capacidade.

Mas temos debatido mais o outro lado da história, a assim chamada, na Constituição, saúde “suplementar”. Nada menos que 49,3 milhões de brasileiros pagam planos e operadoras privados. Entre estes, milhares de funcionários públicos. A dificuldade aqui é equilibrar direitos e necessidades dos segurados com a situação econômica dos planos. É interesse nacional. Imaginem que os planos se tornem financeiramente inviáveis — como o SUS atenderia mais 49,3 milhões? A Constituição garante o direito à vida (significa que o brasileiro não pode morrer, ironizava Roberto Campos), mas a lei não paga a vida. É preciso estudar, trabalhar e comprar um monte de coisas para viver.

É nesse contexto que se deve analisar a decisão recente do STJ, estabelecendo que o rol de atendimentos definido pela ANS é taxativo. De certo modo, uma decisão fora da curva. Tema do próximo artigo.

 

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