O Globo
Aconteceu antes da pandemia, mas o assunto
permanece atual. Cenário: um amplo congresso reunindo juízes, advogados,
funcionários da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), representantes de
órgãos de defesa do consumidor, executivos dos planos de saúde e hospitais.
Tema: as ações que cobravam das seguradoras tratamentos e remédios que não
constavam do rol da ANS ou do contrato. (Na semana passada, o Superior Tribunal
de Justiça voltou ao tema). Um desembargador conclui sua apresentação em grande
estilo:
— Toda vez que cai na minha mesa uma
disputa entre o segurado e o plano, eu decido a favor do segurado, porque a
vida não tem preço.
Juízes de diversas instâncias têm decidido
na mesma direção. No começo de 2019, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo
Tribunal Federal, sapecou:
— Saúde não é mercadoria, vida não é
negócio, dignidade não é lucro.
Tratava-se de uma resolução da ANS que autoriza planos a cobrar uma coparticipação dos segurados em determinados procedimentos. A ministra, claro, decidiu contra os planos.
Na verdade, não deveria ser assim. Colocada
nesses termos — segurado, um indivíduo com um problema de saúde, versus os planos, grandes corporações — , a
decisão será sempre a favor do indivíduo. A Constituição determina: saúde é
direito de todos e dever do Estado.
Só que a vida tem preço. No primeiro caso,
para começar, a prestação mensal do plano.
No caso da ministra, é verdade que não se
encontra o produto saúde numa prateleira de supermercado, mas é preciso comprar
um monte de produtos e serviços para ter saúde: comida, um bom lugar para
morar, água, luz elétrica, roupas e… consultas médicas, vacinas, remédios,
talvez uma cirurgia.
Também não se encontra doença na prateleira
do supermercado — com o perdão da obviedade —, mas quem não pode pagar pelos
remédios adoece. Dirão: mas quem é atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
não paga nada e, sendo tudo de graça, não se encontra aí qualquer relação com o
mercado.
Outro equívoco.
Primeiro, que não é de graça. Todos os
brasileiros, saudáveis ou doentes, pacientes ou não do sistema público, pagam
impostos para financiar o SUS. Além disso, o SUS compra remédios, contrata
médicos e enfermeiros, aluga serviços de hospitais particulares — e tudo isso
tem preço, cada vez mais alto. As novas tecnologias e medicamentos de ponta
tornam a medicina muito mais eficaz. E mais custosa.
A questão séria, portanto, é muito simples
de formular: como financiar os sistemas de saúde. Pelo que se vê no Brasil e
mundo afora, é difícil definir uma política pública que contemple as questões econômicas
e morais. Por aqui, está claro que o SUS não dá conta de sua missão
constitucional. Não consegue atender toda a população brasileira. Além disso,
está subfinanciado para o que faz no momento. Remunera mal tanto seus
profissionais quanto os hospitais que atendem o SUS.
Vamos falar francamente: por esse interior,
tem gente que morre por falta de dinheiro — dinheiro público para os serviços
locais. De qualquer perspectiva, social ou econômica, é preciso fortalecer o
SUS com mais dinheiro e capacidade.
Mas temos debatido mais o outro lado da
história, a assim chamada, na Constituição, saúde “suplementar”. Nada menos que
49,3 milhões de brasileiros pagam planos e operadoras privados. Entre estes,
milhares de funcionários públicos. A dificuldade aqui é equilibrar direitos e
necessidades dos segurados com a situação econômica dos planos. É interesse
nacional. Imaginem que os planos se tornem financeiramente inviáveis — como o
SUS atenderia mais 49,3 milhões? A Constituição garante o direito à vida (significa
que o brasileiro não pode morrer, ironizava Roberto Campos), mas a lei não paga
a vida. É preciso estudar, trabalhar e comprar um monte de coisas para viver.
É nesse contexto que se deve analisar a
decisão recente do STJ, estabelecendo que o rol de atendimentos definido pela
ANS é taxativo. De certo modo, uma decisão fora da curva. Tema do próximo
artigo.
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