Folha de S. Paulo
A política de Bolsonaro é o fruto final de
uma tradição de abandono de três décadas
Na cena do crime, entre duas curvas do rio
Itaquaí, encontrou-se uma mochila, roupas, documentos pessoais e os restos
mortais de
Dom Philips e Bruno Pereira. Há, ainda, uma lancha submersa e dois
suspeitos, pescadores, habitantes da comunidade ribeirinha de São Gabriel. Já a
paisagem do crime, mais complexa, compõe-se de um espaço internacionalizado e
de um tempo histórico. Suas balizas foram tortuosamente indicadas nas
declarações de Bolsonaro e Hamilton Mourão.
O presidente classificou
o triângulo do Javari como
região "selvagem", onde "tudo pode acontecer", definindo a
viagem do indigenista e do repórter como uma "aventura". O vice
qualificou a região como "inóspita" e "perigosa",
"afastada de tudo", na qual "uma serie de ilegalidades
acontece", para lançar às vítimas a acusação implícita de
irresponsabilidade. De fato, ambos estão dizendo que o Estado renunciou à soberania
sobre extensas faixas da Amazônia brasileira.
No palco do teatro político, podemos encerrar o assunto proclamando que Bolsonaro tem "as mãos sujas de sangue de Dom e Bruno". O veredito fácil produz aplausos virtuais em redes sociais, inscrevendo-se no clima da campanha eleitoral. Alternativamente, existe o caminho de iluminar o percurso que fabricou a paisagem do crime.
Até Bolsonaro, todos os governos
pós-ditadura assumiram o compromisso genérico de proteção da Amazônia,
descrevendo-o como fiscalização das fronteiras, preservação da floresta e
garantia dos direitos indígenas em terras demarcadas. Faltou, contudo, um
projeto nacional de desenvolvimento capaz de gerar trabalho e renda para os 28
milhões de habitantes da Amazônia Legal.
Lula até ensaiou um passo nessa direção,
por meio do Plano
Amazônia Sustentável, de 2008, apresentado por Mangabeira Unger com as
palavras "a Amazônia não é apenas uma coleção de árvores; existe ali um
grupo de pessoas". O projeto morreu no berço, pois o governo não pretendia
entrar em conflito com as elites políticas da região – ou seja, efetivamente,
com a densa trama de negócios ilegais ancorada no desamparo das populações.
Nessa trama, incontáveis fios conectam o pescador ribeirinho ao garimpeiro, ao
madeireiro e aos cartéis do narcotráfico.
A política amazônica de Bolsonaro é o fruto
final, envenenado, de uma tradição de abandono reiterada ao longo de três
décadas. Na sua base encontra-se a perversão do conceito de soberania. "A
Amazônia é nossa" significa, para o governo atual e seu cortejo de
militares sem bússola, que a região é terra sem lei, aberta aos negócios da
exploração madeireira, do garimpo mecanizado, da invasão de terras indígenas,
das expedições evangelizadoras, do tráfico internacional de drogas e armas.
Nas monarquias do passado, soberania era um
fim em si mesmo: o privilégio real de extrair soldados e tributos dos súditos
que viviam num território delimitado. No Estado-Nação, pelo contrário,
soberania é um meio para um fim: promover o bem-estar dos cidadãos que habitam
o território nacional. De Sarney a Temer, passando por FHC e Lula, os governos
encararam a Amazônia como "uma coleção de árvores". Bolsonaro deu o
passo seguinte, identificando os interesses dos cidadãos amazônicos com os das
máfias criminosas que operam numa região "selvagem",
"inóspita" e "perigosa".
Três anos atrás, na cúpula do G7, Macron
mencionou os incêndios na Amazônia. A réplica veio
na Ordem do Dia do Exército de 23 de agosto de 2019: "Aos incautos
que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os
soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos
para repelir qualquer tipo de ameaça". Hoje, a paisagem do crime expõe a
dimensão da mentira. Curvados ao capitão da desordem, os "soldados de
Caxias" admitem seu fracasso na missão de assegurar o poder estatal na
"brasileira Amazônia".
*Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Bolsonaro não só abandonou como incentivou o crime naquela região.
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