domingo, 5 de junho de 2022

Dorrit Harazim: Não sois rei

O Globo

Faltam 16 domingos para os 150 milhões de eleitores brasileiros se engalanarem no papel de protagonistas da História do país. Por um breve momento — pelo menos enquanto deposita sua esperança na urna eletrônica —, o eleitor tem o direito de se sentir participante do futuro nacional. É uma sensação valiosíssima, mesmo depois de esmaecer com o tempo ou devido a tropeços da vida. O voto democrático e universal, por ser igualitário, não revela quem somos. Revela apenas que existimos como cidadãos, o que é crucial num país de tamanha maioria invisível. Vinte anos atrás, neste mesmo espaço, escreveu-se que eleições são a única coisa com fila única de verdade no Brasil. Não existe título de eleitor goldpremier ou VIP. Nem título “terrivelmente evangélico” ou reservado a militares. O garoto candidato ao desemprego, o idoso esquecido pela vida, a mulher que rala e vota sozinha, o influencer incensado no TikTok, o próprio candidato a presidente — todos valem o mesmo na contagem dos votos. Nenhum Estado de Direito verdadeiramente democrático sobrevive numa sociedade que não leva a sério elementos básicos da vida cívica, como o respeito à verdade, à razão como meio de busca da verdade e o compromisso com o princípio fundamental da igualdade humana.

Desde que se sentou no Palácio da Alvorada, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem se dedicado a minar a até então sólida confiança nacional no sistema de votação brasileiro. Esse comportamento tão pouco republicano está sendo passado a crivo por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Só que inexiste reparação histórica a curto ou médio prazo para o confisco da esperança nacional em eleições incontestes. Qualquer que seja o vencedor em outubro próximo, o dano está feito — o eleitor terá perdido a certeza de seu poder, enquanto o chefe da nação deposita seu voto como combatente de uma guerra particular.

Ainda dois dias atrás, ao discursar na cidade paranaense de Umuarama, Bolsonaro desandou a criticar o que chamou de “nova classe de ladrão”, referindo-se “àqueles que querem roubar a nossa liberdade” —leia-se todos os ministros do STF à exceção dos que nomeou pessoalmente. “Se precisar, iremos à guerra. Mas quero um povo ao meu lado, consciente do que está fazendo e de por quem está lutando… A liberdade não tem preço, e parece que alguns não querem entender”, acrescentou.

Ah, a liberdade! Poucos ideais da humanidade têm sido invocados com tanto ardor em 2.500 anos de pensamento ocidental. Ao longo da História, o conceito tem representado tanto um meio para alcançar um fim como um fim em si. Os Estados Unidos chegaram a erigir sua identidade nacional em torno desse ideal, por mais que o atropelem sempre que se consideram no direito de fazê-lo. Vale lembrar que o idioma inglês comporta não uma, mas duas palavras sinônimas para a ideia de liberdade: liberty e freedom. A primeira é mais usada para definir o direito individual de agir, crer e se expressar sem restrições, assumindo a responsabilidade por seus atos. A segunda define a condição de independência política, social, as garantias de vida em sociedade comumente associadas à democracia. De Platão a Mano Brown, o tema continua sendo inesgotável.

O uso frequente da palavra “liberdade” por Bolsonaro, em qualquer de suas acepções, deve ser ouvido como incongruência, quase como blasfêmia. Em três anos e meio de governo, o capitão já deu sinais múltiplos de intolerância, de ausência total de empatia e de voluntarismo autoritário. Fosse ele um simples cidadão, apenas intratável, rancoroso e egocêntrico, causaria danos limitados para si e seu entorno. Por se tratar de um presidente acometido de posse no poder, sua ideia de liberdade adquire forma de alto risco nacional.

Em tempos de celebração pelo jubileu de platina da rainha Elizabeth II, que nesta semana festeja seus 70 anos no trono britânico, o mandatário brasileiro talvez tenha ouvido de raspão que a rainha pode tudo — até dirigir sem carteira de habilitação e não pagar impostos (desde 1992, por decisão própria, passou a pagar tributos). Sua Majestade também nunca precisou de (ou teve) passaporte para dar suas 80 voltas ao mundo. Incluído nas “prerrogativas soberanas”, a monarca não pode ser presa nem julgada. Tem direito a duas festas de aniversário ao ano (uma na data do nascimento, outra em comemoração à coroação). Para o jubileu atual, 16 mil festas foram programadas só na Inglaterra. Soa bom, não? Em compensação, a rainha está proibida de expressar qualquer opinião política em público. Abriu raríssima exceção dois anos atrás quando, já vacinada contra a Covid-19, alertou sobre a dificuldade de muitos antivacinas em pensar nos outros. Tampouco pode votar ou ser eleita, direito assegurado a qualquer plebeu brasileiro.

Convém que seja mantido intacto.

 

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