sábado, 25 de junho de 2022

Eduardo Affonso: Um estupro coletivo

O Globo

Dela, não sabemos o nome, só a idade: 11 anos. Tinha 10 quando engravidou numa “relação consensual” com um adolescente pouco mais velho. Primeira violência: crianças de 10 anos não têm condições — físicas, psíquicas, legais — de dar consentimento sexual.

Descoberta a gravidez, é levada pela mãe a um hospital público para o aborto legal. Segunda violência: a equipe médica recusa o procedimento sob a alegação de já ter passado o “prazo-limite”, fingindo desconhecer que a lei não estabelece prazo gestacional para interrupção da gravidez em casos de estupro ou quando há risco à vida da gestante. Ambas as condições estavam atendidas.

Segue, então, para a Vara da Infância e Juventude, onde, supõe-se, encontrará acolhimento. Começa a terceira violência — manipulação, chantagem emocional — desta vez cometida pela promotora e pela juíza do caso, que não têm olhos para a criança de 11 anos, apenas para o feto que ela, a contragosto, traz dentro de si.

— Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer? Quer escolher o nome do bebê? Você acha que o pai do bebê concordaria na entrega para adoção?

— Não, não, não sei — é tudo o que ela sabe dizer.

— Você suportaria ficar mais um pouquinho? A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, para ele ter a chance de sobreviver mais. Em vez de deixar ele morrer, porque já é um bebê, já é uma criança, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando. Ele vai nascer chorando.

Ninguém pensa nela,  na menina de 11 anos. Para as representantes da Justiça, ela é pouco mais que uma incubadora: aguente mais um pouco, ponha sua vida em risco, faça a felicidade de um casal.

É internada (quarta violência) numa instituição, a fim de que o aborto se torne inviável. Passa um mês nesse “abrigo”, longe da mãe, tão somente para que a vontade da DD. Promotora e da MM. Juíza prevaleça sobre seus interesses e os de sua responsável.

— Por óbvio — reconhece a promotora — uma criança em tenra idade não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação.

Mas o óbvio não sobrevive ao implícito: a sacralidade da vida só se aplica, ali, ao feto de 22 semanas — que ainda pode vir a ser — não a ela, a menina de 11 anos — que já é.

Quinta violência: uma desembargadora nega o requerimento para o aborto (que nem precisaria de autorização judicial), por não ver “risco imediato”.

Nenhuma dessas mulheres (que ironia!) fez o que fez em prol da vítima, mas por estarem presas ao arcabouço da crença que as ampara. Por considerarem que sua lei interna se sobrepõe ao Código Penal.

O menino responsável pelo estupro é inimputável. Imputáveis são esses homens e mulheres cujas convicções pessoais tiveram mais peso que os direitos de uma menina.

Outra criança, também estuprada, também de 11 anos, grávida de gêmeos, espera por um aborto legal no Piauí. Todas permanecem anônimas. Que as próximas meninas sem nome e com um feto, fruto de estupro, no ventre, tenham melhor sorte do que esta que deparou com uma equipe médica burocrática e uma joana, uma mirela, uma cláudia. 

Um comentário:

  1. Pensei que fosse um estuprador adulto,são duas crianças fazendo criança,a questão do aborto,neste caso específico,é complicadíssima.

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