quarta-feira, 15 de junho de 2022

Elio Gaspari: Demos o golpe, e agora?

O Globo

A demagogia do século XXI tem tintas milicianas

Num exercício de quiromancia política, pode-se dizer que são mínimas as chances de um golpe nos dias seguintes a uma possível vitória de Lula nas próximas eleições. Mesmo assim, essa afirmação é temerária quando o presidente da República sopra ventos golpistas, e o ministro da Defesa, ex-comandante do Exército, repreende o Tribunal Superior Eleitoral.

Admita-se, portanto, que existem pessoas preferindo um golpe. Para quê?

Em 1968, quando o general Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5, o Brasil vivia um raro processo de radicalização. Grupos armados de esquerda praticavam atos terroristas. Pelo menos 11 bancos foram assaltados. Em junho, seis meses antes da edição do AI-5, um hospital militar foi atacado, e uma bomba explodiu diante do Quartel-General do Exército em São Paulo, matando um soldado. Em julho, terroristas executaram um major alemão supondo que ele era um oficial boliviano. Em outubro, foi assassinado um capitão americano que vivia em São Paulo.

Noutra ponta, com o terrorismo da direita, militares lotados no Centro de Informações do Exército punham bombas em teatros e livrarias vazias. Espancavam-se atores, e um maluco que se dizia ligado a um general praticou pelo menos 14 atentados em São Paulo. Quatro pessoas foram sequestradas no Rio e levadas clandestinamente para quartéis.

Esse clima não existe hoje. Também não existem os sinais de recuperação da economia, prenunciando o que viria a ser o Milagre Brasileiro.

Recuando um pouco mais, chega-se a 1964, quando um governo ruinoso associou-se à indisciplina militar de marinheiros rebelados. Isso não existe hoje. Acima de tudo, não existe o projeto de uma elite autoritária, porém cosmopolita e reformista. Sabendo o que fazia, o general Castello Branco entregou a gestão da economia a Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões.

Hoje, o que há no bufê é um presidente que, depois de flertar com a indisciplina de policiais militares, demitiu três presidentes da Petrobras para derrubar o preço dos combustíveis, e um ministro da Economia que, com uma inflação de dois dígitos, sugere o congelamento voluntário de preços aos supermercados.

Existem pessoas que flertam com um golpe. Para fazer o quê? O que está na mesa é um autoritarismo retrógrado que, pela força da gravidade, se aproximará do velho salvacionismo latino-americano. O coronel Hugo Chávez era um oficial moralista e aventuroso. Eleito presidente, inventou o bolivarianismo, e deu no que deu.

A carta dos golpes do século passado saiu do baralho. Vale lembrar o que escreveu o general Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, no dia 20 de março de 1964:

— Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e sua coexistência.

(Naquele tempo, não existiam milícias nas cidades e nas matas do Brasil. Hoje, as milícias dominam bairros em algumas cidades e associam-se ao crime na Amazônia, infiltrando-se na agenda dos agrotrogloditas.)

Como disse o general Hamilton Mourão em julho de 2018, quando o ex-capitão Jair Bolsonaro cavalgava os sonhos da direita nacional: “Existe certo radicalismo nas ideias, até meio boçal”.

Passaram quatro anos, e a boçalidade avançou.

 

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