Foi nela que se alardeou o programa de
desmatamento sistemático da floresta para fins de expansão do agronegócio,
abrindo passagem para a boiada, na expressão do seu ministro do Meio Ambiente,
na presença patibular da sua ministra da Agricultura, quando também foram
ouvidas manifestações escandalosas de teor predatório das nossas instituições e
dos valores cultivados por que há de melhor em nossas tradições nacionais.
O que o país e o mundo não sabiam até o desfecho trágico do assassinato dos amazônidas Bruno e Don era que havia homens com têmpera de heróis que, mesmo desprotegidos e desprovidos de recursos, porfiavam em defesa da floresta e dos seus povos enfrentando riscos mortais, denunciando, mesmo que com baixo poder de vocalização à opinião pública, nacional e estrangeira, os crimes de lesa pátria que ali se praticavam.
A execução criminosa deles destampou para
horror universal – alguém já lembrou propósito o Coração das Trevas de J.Conrad
– a crueldade a que estavam expostos os naturais da região, particularmente os
indígenas, objetos da exploração predatória exercida por uma rede de pequenos
interesses que estavam na ponta a serviço de grossos interesses capitalistas,
envolvendo inclusive setores do narcotráfico e da traficância de armas, em
movimentos expansivos que visavam por sob controle grande parte dos imensos
recursos naturais ali disponíveis.
A ocupação criminal daquela região não pode
ser encoberta pela razão cínica de que ali o Estado estava a léguas de
distância, embora ele contasse com um histórico de presença, mesmo que
rudimentar, malbaratada que foi pela ação do governo Bolsonaro em sua política
de abrir uma estrada real para a passagem de boiadas, pastos, mineração, das
madeireiras e tudo que pudesse ser convertido em objeto de lucro pela ação de caçadores da fortuna, agentes da
livre iniciativa na linguagem do nosso governante, num capitalismo flibusteiro renomeado
com o solene nome de defesa da soberania nacional.
Será desse lugar remoto da floresta que
pela ação destemida de intelectuais locais aliados a indígenas e a segmentos da
população amazônida, conscientes da necessidade de interlocução com a opinião
pública nacional e estrangeira e com círculos universitários, especialmente os
vinculados às universidades da Amazônia, que vai ter partida o movimento até
então o mais significativo, pela ressonância externa e interna que provoca, na
estratégica questão ambiental para a democracia brasileira.
Dali desvela-se a trama que põe a nu as
redes dos interesses do nosso capitalismo autoritário, na antiga conceituação
do antropólogo Octávio Velho, cujas raízes estiveram e estão radicadas no mundo
agrário solidamente defendidas pelos aparelhos repressivos à disposição dos
movimentos expansivos do capital entre nós. Emancipar a região das fronteiras
amazônicas do crime organizado, protegê-la por um Estado democrático no que
pode vir a ser a missão da iniciativa atual do Senado em instituir uma comissão
para averiguar o que se passa no vale do Javari, pois que é de lá que deveremos
decifrar o projeto sinistro em curso de assentar no país uma nova floração para
o capitalismo autoritário.
O trágico episódio que vitimou nossos
bravos amazônidas, trazendo para o centro da agenda do mundo civilizado os
temas dominantes no cotidiano de resistência em que viviam, é exemplar do papel
transformador que a convicção fundada nos ideais de justiça é capaz de operar.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
Tomara que a morte dos dois ao menos sirva para alertar toda a sociedade.
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