Folha de S. Paulo
Na conjuntura atual, alucinação equivale à
percepção a-histórica dos acontecimentos
Uma hipótese considerável é a de que uma
parcela cada vez maior de comportamentos públicos seja guiada por orientações
situadas entre a alucinação e o fato.
Isso tem sido recorrente sob o atual estado
de coisas. Mas uma demonstração analiticamente exemplar foi dada no ato de
pré-campanha do ex-ministro da Saúde e general da reserva Eduardo Pazuello, num
restaurante da Zona Oeste do Rio.
Ali se registrou aquilo que o olhar da
semiologia poderia caracterizar como uma semiose "fuzzy": um
entrecruzamento de sinais trocados, mas aceitos como discurso coerente sobre a
factualidade.
Primeiro, uma seriação musical constante de hino nacional, Pai-Nosso religioso e trilha de "Tropa de Elite". Até aí, um laivo de coerência, uma vez que o candidato a deputado federal, empenhado num projeto de "formação da base política da direita conservadora contra o ativismo político e judicial", define o seu verdadeiro status: "Eu sou da tropa que o presidente vai ter para 2022".
Nas paredes, ao lado de quadros de
motocicletas possantes, estavam coladas bandeiras do Brasil. Em seguida, uma
sessão de completo desvario. Denunciou-se um plano imaginário, supostamente
gestado no município fluminense de Maricá, de transformar todo o estado num polo
socialista, com "provas" evidentes: "Até ônibus de graça tem
lá". E o Foro de São Paulo estaria trabalhando há mais de 20 anos para
implantar na América do Sul o bolivarianismo.
Esse tipo de discurso, em que um fato é
sinalizado e depois se esconde, abre caminho ao delírio ou à alucinação. Tem-se
falado sobre a penetração de aportes insanos na normalidade institucional (sob
Trump havia a "equipe normal" e a "equipe louca"), mas não
se trata de nada que se possa chamar clinicamente de "loucura". Está
em causa a evidência de que a posição perceptiva de determinadas bolhas grupais
em relação aos objetos reais de experiência é alucinatória.
Assim, o ônibus para os carentes em Maricá
é real, mas a inferência socialista é um delírio. Ou então, governo e militares
proclamam a defesa da Amazônia frente a uma ameaça imaginária, enquanto na
realidade a invasão já se deu por criminosos de vários quilates, sob os olhares
nublados dos delirantes. Sem falar no enredo das urnas eleitorais.
Nessa conjuntura, alucinação equivale à
percepção a-histórica dos acontecimentos. Diz-se que todo paranoico estaria
cinquenta por cento certo.
Em sua organização primitiva da
experiência, a bolha está sempre paranoicamente aquém do fato, oscilando entre
a queixa e a onipotência. A base sensorial é a defesa contra uma falsa
conspiração: socialismo, bolivarianismo, o que se invente. Socialmente, é a
legitimação da boçalidade.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".
É uma gente perigosamente delirante.
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