O Globo
Durou menos de 24 horas a cortina de fumaça
que Jair Bolsonaro, com uma mãozinha inesperada da Suprema Corte dos Estados
Unidos, vinha tentando, com algum sucesso, criar para neutralizar o estrago em
sua imagem provocado pela prisão de seu ex-ministro da Educação Milton
Ribeiro.
O presidente viu na tragédia do estupro de
uma menina de 11 anos, que, além de violentada teve adiado seu direito a um
aborto legal, a chance de surfar num tema que mobiliza seu eleitorado mais
radicalizado. Passou a dizer que mandaria "investigar"
irregularidades em algo que a Constituição garante e a Justiça covardemente
adiou até quase sete meses de gestação.
Durou pouco porque foi revelado o áudio, obtido em grampo legal no inquérito policial para apurar os desvios e o tráfico de influência no MEC, em que Milton Ribeiro diz à filha ter sido avisado pelo presidente que poderia ser alvo de busca e apreensão, o que, no entendimento do Ministério Público Federal, é forte indício de vazamento da investigação e interferência ilegal do presidente nela.
Além de devolver o caso, gravíssimo, ao
centro do noticiário e ao calor das redes sociais, o áudio corrobora aquilo que
o delegado responsável pela investigação, Bruno Calandrini, afirmou, quando, em
carta, disse não ter independência nem autonomia para continuar as
investigações, uma vez que teria havido interferência superior para evitar a
transferência de Milton Ribeiro para Brasília no momento seguinte à sua prisão.
Só a conversa de Milton Ribeiro com a filha
não prova o envolvimento de Bolsonaro para obter informações prévias das
investigações que poderiam chegar nele. O presidente e o entorno vai usar a
palavra "pressentimento", usada pelo ex-ministro, para tentar livrar
a cara do presidente. E vai colar junto ao seu eleitorado fanatizado, para o
qual nada abala a confiança cega no "Mito".
Mas uma investigação profunda fazendo a
cronologia dos fatos e casando o áudio obtido com o resultado da quebra de
sigilo do ex-ministro e as mensagens trocadas entre ele e Bolsonaro pode compor
os elementos de prova. A conversa de Ribeiro com a filha foi em 9 de junho. O
pedido da PF para busca e apreensão é do dia 13, e a autorização da Justiça, do
dia 15.
A defesa de Bolsonaro vai tentar usar isso
como prova de que ele não tinha como saber. Mas um pedido desta magnitude não é
feito no dia, e sim preparado ao longo de semanas. A isso poderá responder o
delegado Calandrini, quem primeiro apontou interferência política na
investigação: alguém com acesso à apuração poderia ter alertado o Planalto do
que estava por vir?
Daí a importância da decisão do juiz
federal Renato Borelli, que, ao devolver o caso ao Supremo Tribunal Federal
após o pedido do MPF diante do áudio com os indícios de vazamento da operação e
interferência política de Bolsonaro, o tira da alçada do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região.
Foi o desembargador Ney Bello, do TRF-1,
quem, por liminar, mandou soltar Ribeiro e os pastores investigados por
favorecimento com recursos do MEC um dia depois das prisões preventivas. O
TRF-1 é hoje, no Brasil, a corte mais favorável a Bolsonaro e seus aliados,
colecionando decisões que revertem outras que poderiam ser potencialmente
preocupantes para o presidente, familiares e ministros.
A apuração a respeito da interferência
direta de Bolsonaro sobre a PF para blindar o ex-aliado e a si próprio coloca o
presidente como o centro do escândalo, posição da qual ele vinha tentando se
esquivar ora jogando Ribeiro nas chamas sozinho, ora mudando de assuntos para
temas da pauta de costumes com os quais gosta de lacrar, como o aborto.
A polícia prende e a justiça solta.
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