Folha de S. Paulo
Veja quanto cidades gastam em cultura e o
peso dos eventos nos orçamentos
Um show sertanejo pode custar R$ 1,2 milhão
para uma pequena prefeitura, soubemos por estes dias. Em alguns casos extremos,
o gasto em uma noite de cantoria chega a quase R$ 100 por habitante da cidadezinha. Noutras,
o cachê per capita é mais modesto, entre uns R$ 20 e R$ 60.
É muito dinheiro? Das cerca de 4.900
prefeituras que declararam gastos na "função cultura" em 2021, apenas
510 gastaram mais de R$ 1,2 milhão no ano passado. Em apenas 159 delas o gasto
anual per capita em "cultura" foi maior do que R$ 100. São dados
pescados no Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público
Brasileiro.
O show parece caro, pois. Para fazer uma dessas comparações aleatórias das estatísticas da administração pública, um aparelho de ultrassom "seminovo" custa uns R$ 300 mil. Um trator superfaturado desses de emenda parlamentar do centrão custa R$ 500 mil (mas vale R$ 200 mil).
Lembrei do ultrassom porque é uma queixa
comum no interior e em periferias. O povo precisa de exame urgente e o
ultrassom está quebrado ou inexiste. Mas tem show.
Esses exemplos acidentais, porém tristes de
verdadeiros, alimentam conversas demagógicas sobre despesa pública, tal como
aquela tolice de dizer que, "se tirassem os privilégios dos políticos, o
governo teria dinheiro" (não, não teria nem se o Congresso evaporasse,
apesar de ser necessário tirar privilégios). Essa treta dos sertanejos ou da
Rouanet tem sua demagogia. É preciso ter uma ideia mínima do conjunto do
problema.
No ano passado, as prefeituras gastaram
pelo menos R$ 4,2 bilhões na "função cultura". Os governos dos
estados, R$ 3,5 bilhões. O governo federal, R$ 1,25 bilhão. Nessas contas, não
estão incluídos descontos de impostos. Pela Lei Rouanet,
o incentivo foi de R$ 1,9 bilhão. Com esses números já é fácil perceber a
burrice salafrária da campanha bolsonarista.
É nas cidades, pois, que está o maior gasto
na "função cultura". Sabe-se lá que tipo de despesa é lançado nessa
rubrica —os pesquisadores da área apenas começam a estudar o assunto. Sabe-se
que muito município gasta mal, até pelo mero fato de existir: não tem receita
própria para bancar governo, burocracia, vereador, prebendas, menos ainda para
prestar serviço público.
Segundo o Perfil dos Municípios Brasileiros
do IBGE (o mais recente é de 2018), o caso mais comum de apoio financeiro
municipal para a cultura era então o de "festas, celebrações e
manifestações tradicionais e populares" (acontece em 85,5% das prefeituras).
Apoio a "eventos" vinha em segundo lugar (75,7% das cidades).
"Apresentação musical" em terceiro (62,8%). Em quarto, empatados com
30%, vinham "desfile de carnaval", "montagem de peças
teatrais" e "seminário, simpósio, encontro, congresso,
palestra".
Turismo ou outras atividades ditas
"culturais", festas ou patrimônio histórico, são importantes para as finanças e empregos de muita cidade. O
gasto na "função cultura" pode ser uma política econômica local. Se é
eficiente, são outros quinhentos. Uma noite de verão de show caro não deve multiplicar muito os negócios, a inteligência ou a
educação.
Pegaram esse Gusttavo Lima para Judas, embora o cantor e seus
amigos bolsonaristas do Sertanejistão devam saber por que estão apanhando. De
modo explícito ou não, apoiaram a campanha de avacalhação da Rouanet e dos
artistas que viveriam dessa mamata, que seriam uns comunistas, drogados, devassos
e praticantes da ideologia de gênero.
Mas Chicos e Franciscos, levem pau da
esquerda ou da direita, recebem esses dinheiros. Se o gasto faz sentido, a gente
não quer saber, da cantoria ao subsídio da gasolina.
Chamar música sertaneja de cultura é bondade pura.
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