domingo, 5 de junho de 2022

Vinicius Torres Freire: Quanto vale o show do sertanejo

Folha de S. Paulo

Veja quanto cidades gastam em cultura e o peso dos eventos nos orçamentos

Um show sertanejo pode custar R$ 1,2 milhão para uma pequena prefeitura, soubemos por estes dias. Em alguns casos extremos, o gasto em uma noite de cantoria chega a quase R$ 100 por habitante da cidadezinha. Noutras, o cachê per capita é mais modesto, entre uns R$ 20 e R$ 60.

É muito dinheiro? Das cerca de 4.900 prefeituras que declararam gastos na "função cultura" em 2021, apenas 510 gastaram mais de R$ 1,2 milhão no ano passado. Em apenas 159 delas o gasto anual per capita em "cultura" foi maior do que R$ 100. São dados pescados no Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro.

O show parece caro, pois. Para fazer uma dessas comparações aleatórias das estatísticas da administração pública, um aparelho de ultrassom "seminovo" custa uns R$ 300 mil. Um trator superfaturado desses de emenda parlamentar do centrão custa R$ 500 mil (mas vale R$ 200 mil).

Lembrei do ultrassom porque é uma queixa comum no interior e em periferias. O povo precisa de exame urgente e o ultrassom está quebrado ou inexiste. Mas tem show.

Esses exemplos acidentais, porém tristes de verdadeiros, alimentam conversas demagógicas sobre despesa pública, tal como aquela tolice de dizer que, "se tirassem os privilégios dos políticos, o governo teria dinheiro" (não, não teria nem se o Congresso evaporasse, apesar de ser necessário tirar privilégios). Essa treta dos sertanejos ou da Rouanet tem sua demagogia. É preciso ter uma ideia mínima do conjunto do problema.

No ano passado, as prefeituras gastaram pelo menos R$ 4,2 bilhões na "função cultura". Os governos dos estados, R$ 3,5 bilhões. O governo federal, R$ 1,25 bilhão. Nessas contas, não estão incluídos descontos de impostos. Pela Lei Rouanet, o incentivo foi de R$ 1,9 bilhão. Com esses números já é fácil perceber a burrice salafrária da campanha bolsonarista.

É nas cidades, pois, que está o maior gasto na "função cultura". Sabe-se lá que tipo de despesa é lançado nessa rubrica —os pesquisadores da área apenas começam a estudar o assunto. Sabe-se que muito município gasta mal, até pelo mero fato de existir: não tem receita própria para bancar governo, burocracia, vereador, prebendas, menos ainda para prestar serviço público.

Segundo o Perfil dos Municípios Brasileiros do IBGE (o mais recente é de 2018), o caso mais comum de apoio financeiro municipal para a cultura era então o de "festas, celebrações e manifestações tradicionais e populares" (acontece em 85,5% das prefeituras). Apoio a "eventos" vinha em segundo lugar (75,7% das cidades). "Apresentação musical" em terceiro (62,8%). Em quarto, empatados com 30%, vinham "desfile de carnaval", "montagem de peças teatrais" e "seminário, simpósio, encontro, congresso, palestra".

Turismo ou outras atividades ditas "culturais", festas ou patrimônio histórico, são importantes para as finanças e empregos de muita cidade. O gasto na "função cultura" pode ser uma política econômica local. Se é eficiente, são outros quinhentos. Uma noite de verão de show caro não deve multiplicar muito os negócios, a inteligência ou a educação.

Pegaram esse Gusttavo Lima para Judas, embora o cantor e seus amigos bolsonaristas do Sertanejistão devam saber por que estão apanhando. De modo explícito ou não, apoiaram a campanha de avacalhação da Rouanet e dos artistas que viveriam dessa mamata, que seriam uns comunistas, drogados, devassos e praticantes da ideologia de gênero.

Mas Chicos e Franciscos, levem pau da esquerda ou da direita, recebem esses dinheiros. Se o gasto faz sentido, a gente não quer saber, da cantoria ao subsídio da gasolina.

 

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