O Globo
Odorico Paraguaçu se acomoda no Palácio do
Planalto e distribui benesses para tentar se reeleger
Não importa onde você mora no Brasil: você
tem na cabeça um político que representa o arquétipo do populista tupiniquim.
Aquele do rouba-mas-faz, que adora inaugurar obras e tem um talento inigualável
acima de um palanque.
Nos últimos 30 anos, criamos várias amarras
institucionais para evitar que políticos desse tipo se utilizem da máquina
pública para prosperar. Infelizmente, estamos dando um passo para trás. Esta
semana, o Congresso abriu os cofres do governo federal em ano eleitoral, algo
que seria ilegal em tempos normais.
Nos meus anos formativos, minha referência de populista era Joaquim Roriz, ex-governador do Distrito Federal. Um de seus programas chamava-se “Pão e Leite”. O governo literalmente comprava pão e leite e distribuía para a população mais pobre. Parte do povo cantava: “Roriz é ‘bão’; dá leite e dá pão”.
Seria muito mais difícil ele implementar
esse tipo de troca de benesses por voto nos últimos anos. Isso porque, como
país, passamos por um longo processo para colocar amarras nas mãos de políticos
populistas.
Por um lado, esse processo significou a
despersonalização dos programas sociais.
O que isso quer dizer? Pense em alguém que
trabalha no mercado formal e perde seu emprego. Ao receber o seguro-desemprego,
dificilmente essa pessoa encara esse benefício como vindo do governante. Ao
contrário, ela percebe esse seguro social como um direito que existe a despeito
de quem ganhou a eleição.
Mas quase metade dos brasileiros não
trabalha no mercado formal. Para estes, durante muito tempo, a assistência
social foi o pão e o leite de políticos como Roriz.
O processo de criação do Cadastro Único
para as políticas sociais do governo federal, iniciada no governo Fernando
Henrique Cardoso e consolidada no primeiro governo Lula, foi um passo
importante para levar essa mesma lógica de despersonalização à assistência
social aos mais pobres.
O benefício estava disponível a todos que
atendessem determinados requisitos, de forma clara e impessoal. Com o passar do
tempo, a persistência do Bolsa Família deu aos mais vulneráveis a certeza de
que esse direito não era condicional ao governante em questão.
A transferência deixava de ser um dádiva do
governante e passava a ser uma função de regras perenes e transparentes. Quanto
maior a institucionalização, menor a possibilidade de troca de votos por um
benefício. Por outro lado, houve longo processo de criação de amarras para a
limitação do gasto irresponsável e eleitoreiro pelos governantes.
Em 2000, foi aprovada a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Ela trouxe várias provisões que limitavam a capacidade
do governante de agir de forma populista. Por exemplo, proibiu o uso dos bancos
públicos para financiar governos estadual e federal, como ocorreu durante a
Ditadura.
Além disso, ela limitou a contratação de
gastos permanentes — como novos servidores públicos — no ano final de mandato,
limitando a “herança maldita” que os perdedores deixam para os futuros
mandatários.
Reformas eleitorais posteriores
restringiram ainda mais os gastos permitidos. Hoje em dia é proibida a
distribuição gratuita de bens ou valores em ano eleitoral. A lógica das medidas
parte sempre do pressuposto de que os políticos têm incentivo para gastar e
que, para um equilíbrio de forças eleitoral, é preciso colocar limites
institucionais a esse tipo de instrumento.
Após essa breve história, voltemos ao
presente. Nesta quinta-feira, o Senado aprovou por 72 votos a favor e um voto
contrário um pacote de transferências que inclui um total de R$ 41,2 bilhões em
novos gastos.
Há benesses para todos os gostos.
Auxílio-Caminhoneiro, benefícios para taxistas, vale-gás e aumento da parcela
do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600. Individualmente, cada um desses
projetos pode ter méritos. Mas o surpreendente é que as transferências só são
válidas até o fim do ano. Elas seriam ilegais em tempos normais.
Para evitar afrontar a legislação
eleitoral, a PEC dá um jeitinho: declara um falso “estado de emergência”, por
causa do preço dos combustíveis. Com ele, as amarras institucionais criadas ao
longo de 30 anos são suspensas.
Com isso, estamos de volta ao mundo daquele
político populista sobre o qual você pensou no começo deste artigo, mas em
escala nacional. Sem alarde, o Brasil torna-se uma grande Sucupira. Odorico
Paraguaçu se acomoda no Palácio do Planalto e distribui benesses para tentar se
reeleger.
Uma Sucupira nacional e real.
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