O Globo
Em 1970, Chico Buarque lançou, num compacto
simples, um samba endereçado a “uma mulher muito mandona, muito autoritária”.
Na letra, vaticinava que, apesar dela, amanhã seria outro dia. Ela ia se dar
mal. Ia pagar dobrado, inclusive — porque ele jurava cobrar com juros cada
lágrima rolada.
Fosse hoje, uma feminista mais radical e mais
afoita acusaria o autor de misoginia. Um militante identitário apontaria o
racismo estrutural implícito nos versos E
inventou de inventar/Toda a escuridão — por associar o escuro
a algo negativo — e Vendo o
céu clarear — a claridade como fonte de luz e esperança, onde
já se viu?
Demorou mais de um ano para que a ficha
caísse (havia fichas, em 1970), e a censura percebesse que a tal mulher
autoritária atendia pelo nome de Ditadura. Então, o subtexto daquele samba no escuro ficou claro —
ou escuro — e “Apesar de você”, exemplo incontestável da inteligência
buarquiana, foi proibido. Censores — sejam eles do aparato do Estado ou da
polícia do pensamento — nunca primaram muito pela desenvoltura intelectual.
Passaram 52 anos, e Chico Buarque lançou, nas plataformas virtuais, outro samba antológico. Não há mais fichas a cair nos orelhões ou na famigerada Turma de Censura de Diversões Públicas. O recado agora é direto, sem subterfúgios: Que tal um samba (...) Para espantar o tempo feio/Para remediar o estrago/Que tal um trago?/Um desafogo, um devaneio.
Meio século, e o tempo continua fechado.
Não mais aquele “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável”
com que o Jornal do Brasil se referiu, veladamente, à decretação do AI-5, em
1968. Até porque nenhum jornal é doido de usar a expressão “tempo negro” para
falar de nuvens negras. (Talvez também não se possa mais dizer “doido”, palavra
capacitista, para caracterizar algo insano.)
De novo se fala em golpe — não o consumado,
mas o que se insinua. De novo os militares onde não deveriam estar. De novo a
sensação de já termos tido dias melhores. E, de novo, a possibilidade de ler
nas entrelinhas.
Depois de tanta derrota/Depois de tanta
demência é
alusão óbvia ao governo atual. Mas Depois
de tanta mutreta/Depois de tanta cascata será sobre Bolsonaro,
Temer, Dilma, Lula, FH, Collor ou Sarney?
Que tal uma beleza pura no fim da borrasca? ecoa a mesma
fé de Amanhã há de ser outro
dia/Você vai ter que ver/A manhã renascer/E esbanjar poesia.
E Depois de muita bola fora da
meta e Já
depois de criar casca e perder a ternura, não sei bem por que, me
parecem conter — finalmente! — uma crítica ao PT.
Esconjurar a ignorância, que tal?/Desmantelar a
força bruta deve
ser um recado para essa direita tosca, retrógrada, armamentista. É, sem dúvida,
um toque na esquerda o trecho que diz Juntar os
cacos, ir à luta. E, para quem ainda se agarra à utopia de um
governo que não seja o retorno ao que já deu muito errado ou a continuação do
que não está dando nada certo — para quem ainda insiste em ser democrata,
tolerante, liberal —, Chico reservou um verso: E uma dor filha da puta, que tal?
Gênio.
Eu acho que os recados são todos direcionados ao governo atual.
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