sábado, 2 de julho de 2022

Eduardo Affonso: Que tal um samba, apesar de você?

O Globo

Em 1970, Chico Buarque lançou, num compacto simples, um samba endereçado a “uma mulher muito mandona, muito autoritária”. Na letra, vaticinava que, apesar dela, amanhã seria outro dia. Ela ia se dar mal. Ia pagar dobrado, inclusive — porque ele jurava cobrar com juros cada lágrima rolada.

Fosse hoje, uma feminista mais radical e mais afoita acusaria o autor de misoginia. Um militante identitário apontaria o racismo estrutural implícito nos versos E inventou de inventar/Toda a escuridão — por associar o escuro a algo negativo — e Vendo o céu clarear — a claridade como fonte de luz e esperança, onde já se viu?

Demorou mais de um ano para que a ficha caísse (havia fichas, em 1970), e a censura percebesse que a tal mulher autoritária atendia pelo nome de Ditadura. Então, o subtexto daquele samba no escuro ficou claro — ou escuro — e “Apesar de você”, exemplo incontestável da inteligência buarquiana, foi proibido. Censores — sejam eles do aparato do Estado ou da polícia do pensamento — nunca primaram muito pela desenvoltura intelectual.

Passaram 52 anos, e Chico Buarque lançou, nas plataformas virtuais, outro samba antológico. Não há mais fichas a cair nos orelhões ou na famigerada Turma de Censura de Diversões Públicas. O recado agora é direto, sem subterfúgios: Que tal um samba (...) Para espantar o tempo feio/Para remediar o estrago/Que tal um trago?/Um desafogo, um devaneio.

Meio século, e o tempo continua fechado. Não mais aquele “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável” com que o Jornal do Brasil se referiu, veladamente, à decretação do AI-5, em 1968. Até porque nenhum jornal é doido de usar a expressão “tempo negro” para falar de nuvens negras. (Talvez também não se possa mais dizer “doido”, palavra capacitista, para caracterizar algo insano.)

De novo se fala em golpe — não o consumado, mas o que se insinua. De novo os militares onde não deveriam estar. De novo a sensação de já termos tido dias melhores. E, de novo, a possibilidade de ler nas entrelinhas.

Depois de tanta derrota/Depois de tanta demência é alusão óbvia ao governo atual. Mas Depois de tanta mutreta/Depois de tanta cascata será sobre Bolsonaro, Temer, Dilma, Lula, FH, Collor ou Sarney?

Que tal uma beleza pura no fim da borrasca? ecoa a mesma fé de Amanhã há de ser outro dia/Você vai ter que ver/A manhã renascer/E esbanjar poesia. E Depois de muita bola fora da meta e Já depois de criar casca e perder a ternura, não sei bem por que, me parecem conter — finalmente! — uma crítica ao PT.

Esconjurar a ignorância, que tal?/Desmantelar a força bruta deve ser um recado para essa direita tosca, retrógrada, armamentista. É, sem dúvida, um toque na esquerda o trecho que diz Juntar os cacos, ir à luta. E, para quem ainda se agarra à utopia de um governo que não seja o retorno ao que já deu muito errado ou a continuação do que não está dando nada certo — para quem ainda insiste em ser democrata, tolerante, liberal —, Chico reservou um verso: E uma dor filha da puta, que tal?

Gênio. 

 

Um comentário: